segunda-feira, 30 de abril de 2007

Capítulo XI


- Espera. Dá-me tempo para me acalmar. Não estou habituado a estas emoções!

Marta olhava para ele ali, nervoso, assustado, mas havia mais alguma coisa. Algo que não batia certo. Marta, recém sabedora das suas capacidades, prestou atenção ao que sentiu. Ia falar com Mário quando o telemóvel tocou.

- Dr. Marta? Aqui fala a Inspectora Joana. Está recordada?

“Como podia esquecer”. Pensou Marta

- Sim, claro.

- Dr.Marta, lamento muito perturbá-la a esta hora mas o Inspector Mesquita pediu que viesse connosco a um local.

- Quem? Eu saí daí ainda há pouco.

- O Inspector Francisco Mesquita. Foi-lhe impossível estar presente na reunião que tivemos de tarde mas eu informei a doutora que o Inspector Mesquita é o responsável pela investigação.

- Isto não pode ficar para amanhã?

- Eu vou buscá-la a casa. É importante Dr. Marta. Existe a possibilidade de uma nova vitima.

Marta engoliu em seco. – Está bem. Fico à sua espera.




- A doutora que o nosso amigo nos indicou concordou em ir connosco.

O inspector Francisco riu-se.

- Porque não dizemos “Aqueles que não queremos mencionar”? Trate as pessoas pelo nome, Joana.

- Quem diria? A nossa própria Allison Dubois! Continuou Francisco.

- Como?

- A Allison Dubois, é da série Medium… deixe lá, esqueça.

O Inspector Francisco já se tinha habituado a que não percebessem as suas fantásticas, achava ele, tiradas. Francisco era um ávido leitor e um não menos ávido espectador de filmes e séries. Quem trabalhava com ele já não se admirava quando Francisco comentava ou comparava um crime ou outro assunto qualquer com frases, cenas e personagens fictícias.

Sendo um divorciado a chegar aos 35 anos, Francisco tinha o tempo fora da Judiciária só para si. Não era muito dado a saídas e viagens, a não ser que o destino fosse a casa dos pais, e como tal gastava o seu tempo naquilo que mais gostava, o mundo da ficção. “Preencher a mente com estas histórias ajuda-me a reconstruir os quebra-cabeças que nos aparecem”, costumava ele dizer.

- Ela não é médium – disse Joana – quer dizer, não sei! Sente as situações, o carácter das pessoas, se a estão a enganar. O professor pode explicar-te melhor.

- Meu Deus! O estrago que ela podia fazer na Assembleia da Republica!

- Chefe – riu-se Joana – isto é a sério!

- Mas eu estou a falar a sério. – piscou-lhe o olho – Ok. Vamos lá!



- Mas eu não posso voltar para casa! – disse Mário pela, pelo que pareceu a Marta, a centésima vez.

- Fala baixo. Eu não sou surda.

- Eu fico aqui à tua espera. Por favor Marta?

Já sem tempo para tentar chegar a qualquer outra solução, Marta concordou.



- Como está Doutora? Perguntou a Inspectora Joana já no interior do carro.

- Podia estar melhor. Este dia parece que não quer acabar!

- O Inspector Francisco foi directo para o local. Vai gostar dele. Já vi que a Doutora gosta de rir-se e ao Inspector humor é que não falta!

“Que bom.” Pensou Marta “Só me faltava um palhaço.”

- Estamos a dirigir-nos para o local da investigação? Eu pensava que não me iria envolver neste lado da questão.

- A situação mudou um bocado, complicou-se, e a possibilidade de uma quarta vitima acelerou o processo.

- Inspectora? O Dr. Pedro vai estar no local?

- De-Desculpe? Gagegou Joana.

- O Dr. Pedro Madureira?

- Ele já lá está.

Marta ficou aliviada. Uma cara que podia chamar de familiar.

- Doutora. É melhora avisá-la. A vitima. É, era – corrigiu Joana – a esposa do Doutor Madureira.

O resto do caminho fez-lo calada. “A esposa do Doutor Madureira”, como é que ela não percebeu que Pedro era casado. “Que raio de PES sou eu?”

Quando deu por ela já estava na casa de Pedro. A casa onde tinha estado dias antes. Olhou em volta da sala em busca de pistas que lhe pudessem ter dito a real situação de Pedro. Viu que não haviam fotos pessoais, apenas de paisagens e monumentos. Percebeu que a sala podia ser de qualquer pessoa, não havia lá nada que a identificasse como sendo de um homem solteiro ou casado. Apenas numa observação mais cuidada se perceberia que havia ali um casal.

Foi até quarto. Ao olhar para aquela cena Marta não pode deixar de sorrir. Todos de toucas e batas brancas, nada do ambiente de glamour e fatos Dolce&Gabana que se vê nos CSI.

- Não é como na TV, pois não.

A voz aveludada surgiu atrás dela. Mais uma vez Marta sorriu “deve ser outro PES”.

Marta virou-se, o seu olhar encontrou o olhos castanhos de Francisco. O olhar dele perturbou-a. Isso poderia ser um mau sinal mas naquele momento soube-lhe muito bem.

- Não, realmente não!

- Eu sou o Inspector Mesquita. Muito prazer. Mas deixe estar que eu não fico nada atrás de Horatio Cane!

- Também têm os óculos-de-sol?

Francisco não contava com a resposta mas ficou agradavelmente surpreendido.

- Claro! E até uma ou outra pérola de sabedoria.

Marta ia rir-se quando se apercebeu da presença de Pedro no quarto. A gargalhada calou-se.

sábado, 28 de abril de 2007

Capítulo X

O táxi amarelo afastava-se, pronto para mais um serviço e com o “cofre” agora mais recheado. Por sua vez, Marta entrara já no seu prédio e dirigia-se, completamente absorta em pensamentos, ao seu apartamento. Quando estava mesmo a ponto de embrechar a chave na fechadura, algo a despertou dos seus pensamentos..., era o ladrar de um “Leão Chinês”, um Shi-Tsu!
“Mas que raio está a fazer o cão em minha casa? Ou...É pá, não acredito, estou no andar errado!” pensou Marta.
Dirigiu-se às escadas de serviço, a luz acendeu-se com o movimento da porta e Marta subiu até ao seu piso, imediatamente acima, sempre a tilintar o porta-chaves, munido com um pequeno boneco ‘Smurf’, ou ‘estrunfe’, do qual obteria uma mini chave de fendas se lhe desapertasse a cabeça. Enfim, até à data apenas lhe servira como porta-chaves.
Ao entrar em casa, Becas foi o único a cumprimentar Marta. Era o seu recepcionista particular, acolhia-a sempre com carinho, esperando também merecidos miminhos. Fechou a porta atrás de si e trancou-a.
Pousou um dossier no sofá e sentou-se.
“Becas, becas” Chamou. “Vem cá, vem ter com a Martinha...ou melhor, com a Agente Marta! Ehehe” Marta riu, mas ao mesmo tempo sentiu um arrepio subir-lhe corpo acima...
“Porque confiará a Judiciária assim em mim? Terei mesmo as capacidades que Pedro mencionou? E este, onde se meteu? Por que é que me deixou sozinha com a ‘Judite’? Bem, mas basta de emoções por hoje, se posso realmente ajudar alguém, devo fazê-lo concentrada, e neste momento estou tudo, menos isso.”
Já descalça, com os seus pés pequeninos a percorrer o flutuante do apartamento, dirigiu-se à aparelhagem e procurou por entre alguns cd’s que tinha espalhados na estante, um que lhe agradasse.
“phfff, tanta música e tão pouco vontade de escolher...” Ligou a aparelhagem e colocou em “Tuner”. A estação sintonizada era a mesma que tinha por hábito no seu Mazda 3. A opção acabou por ser boa, pois a música que passava, Mary J Blige and U2 - One, era-lhe ideal para relaxar.
Voltou a recostar-se no sofá, esticou as pernas no seu ‘chaise long’. Tentou abstrair-se. Não queria pensar mais no possível ‘serial-killer’ ou nos vários assassinos que andavam por aí à solta e que já tinham vitimado 3 pessoas. Caber-lhe-ia a ela, filtrar e procurar pistas de todas as informações recolhidas pela Judiciária. “Apenas terá de analisar estes documentos D. Marta. Ninguém saberá do seu envolvimento na procura deste marginal e estará tão segura como sempre” Dissera-lhe um dos inspectores da Judiciária.

Já quase a dormir, uma música chamou-a à atenção:
‘Chasing Cars’, dos Snow Patrol
Ao ouvi-la relembrou-se dos dois ‘pombinhos’ da rádio...
“Como estarão eles? Será que ele já voltou a ‘declarar-se’?
Foi então que um trecho da música lhe baralhou o pensamento...
“If i just lay here, would you lie with me and just forget the world?” Pensou Marta…”Mas porquê ‘Lay’? Isto pode ter o significado de - armar (uma cilada) e ‘would you lie with me - mentirias comigo’? Será que não era apenas uma dedicatória? Será que estava a tentar dizer-lhe mais qualquer coisa?”
Marta quase tem um ataque cardíaco, quando sem aviso prévio a campainha toca.
“Fonhasse...” pensa ela, com o seu termo que utilizava para substituir o real palavrão. Ao olhar pelo ‘peep hole’ da porta, vê Mário, o seu colega de trabalho. Mário, era o ‘Real tesoureiro’ ou o ‘pirata do tesouro’ como Marta gostava de o apelidar. Era um rapaz novo, na casa dos 27 anos, de estatura média, talvez 1m75, olhos castanhos e cabelo preto. Era muito profissional no trabalho que fazia e ao mesmo tempo sempre bem humorado, gostando de se meter com toda a gente. No entanto, agora ali a olhar para ele, Marta achara algo de estranho…
“Que ‘diabo’ estará ele aqui a fazer? Como sabe onde eu moro? E que cara de assombro? Ai, ai, não estou a gostar...” Pensou.
Com naturalidade abriu-lhe a porta, mas não teve qualquer oportunidade de falar. Mário invadiu-a com um discurso tão sobrecarregado e sobreposto de palavras que Marta nada percebeu.
“Calma Mário, calma! Entra! Afinal o que se passa?”
“Marta..., acho que me seguiram até casa...mas saí pelas traseiras...Foi do dossier! Só pode! E as transferências! Eram muito estranhas Marta...

quarta-feira, 25 de abril de 2007

Capítulo IX


Paralisado. César encontrava-se paralisado. Tantos dias a trabalhar junto de Clara, a sentir a voz aveludada que ela lançava para os microfones; tantos dias a reprimir um impulso; tantos dias a sentir um frémito por cada palavra de veludo dela. Juntos. Trabalhavam juntos. Tantas horas de emissões e nunca fora capaz de avançar perante ela e, afinal, Clara era capaz de sentir algo idêntico por ele. Quanto tempo perdido. «Não bastava o tempo perdido! Teve de ser ela a avançar», massacrava-se ele. «Otário! És um otário!»

A mala de Clara estava em cima da secretária. César avançava titubeante para a mala, vira nela a oportunidade de ir ter com Clara, um pretexto. Mas isso não o tranquilizava, pelo contrário, estava aterrado com a ideia de ela o rejeitar, com a ideia de não conseguir ir ter com ela e dizer-lhe que gosta de cada palavra sua, de cada gesto meigo... Todos os gestos de Clara são meigos! Disso César não tem dúvidas: são meigos! Se Clara fosse uma palavra da Língua Portuguesa, seria TERNURA. Agora, quanto ao beijo, César tinha dúvidas; desejava tanto Clara que quando ela lhe deu um sinal nem acreditou, foi assaltado por dúvidas. «O beijo foi acidental, claro que ela não gosta de mim. Se, ao menos, ela não tivesse saído tão bruscamente depois do beijo, todos estes fantasmas teriam desaparecido; mais valia receber a má notícia logo do que viver permanentemente angustiado. Ficava tudo esclarecido. Levo ou não a mala? A mala? A mala é um pretexto... Sim, levo! De hoje não passa!» Agarrou na mala e saiu disparado. Arrancou com o carro, ia decidido.

«Vou conseguir! Vou dizer-lhe o que sinto! Eu sou forte! Não há limites para mim! Não. Se calhar vou a casa dela fazer uma figura ridícula. Ela vai ficar com raiva de mim, não tenho esse direito! Se ao menos não fosse casada... Sou fraco. Sou fraco!» Contudo, continuava a conduzir em direcção à casa de Clara. «Não, de hoje não passa!» César vivia conflitos interiores fortíssimos, o seu peito era um campo de batalha. Tinha paixão pela vida, sentia que podia ser feliz, sentia que Clara seria o amor da sua vida mas, a sua cobardia fazia-o curvar-se perante o que de mais trágico tinha a vida: a solidão. Hoje estava disposto a ir até ao fim, se corresse mal, o pior que podia acontecer era pedir desculpa a Clara e nunca mais aparecer na rádio. Era isso. Mudaria de emprego se fosse preciso! Ela estava em casa. O Clio dela estava diante de si, ali na rua. «Vou conseguir. Vou dizer-lhe o que sinto! Eu sou forte!» Entretanto, quando reunira todas as forças para o acto mais importante da sua vida, para a grande batalha, vê entrar em casa de Clara o seu marido. «Foda-se! Foda-se!» Era um jovem advogado de olhos verdes como os de Clara, um galã que fazia surf. «Como se chama o gajo...» Ele fora buscá-la um dia ao trabalho. Clara falara-lhe dele. «Pedro, é Pedro o cabrão! Odeio-o!» César foi-se embora.

Para César, esta foi mais uma derrota. Tinha prometido que de hoje não passaria... De noite nem dormiu. Fixou-se nos retratos da parede... Era ela por todo o lado. De que valia dormir, a incerteza era um sentimento de morte que o tomava. De manhã, barba por cortar, hirsuto, olhos encovados, só uma coisa o preocupava, como abordar Clara? Já estava na rádio e, ao entrar na recepção, ficou prostrado: corria a notícia de que Clara morrera! «O marido telefonou a dizer que a Clara adormeceu na banheira, morreu afogada, mas será feita a autópsia ainda hoje de manhã.» As palavras frias da recepcionista vararam-lhe a alma. Como era possível a morte de uma pessoa resumir-se a uma frase tão neutra. «Não é possível! Não pode ser verdade!» César estava incrédulo com a notícia. «A culpa foi minha», martirizava-se. «Perdi tempo de mais com excitações. Se fosse logo levar a mala...» César queria morrer também, ali mesmo...

terça-feira, 24 de abril de 2007

Capítulo VIII


César, César... O nome dele ecoava na sua cabeça a cada passo que dava.
Clara entra de rompante no escritório dirigindo-se imediatamente para o bengaleiro onde tinha o seu casaco pendurado. Ainda a tremer, retira um lenço de papel já amarrotado de um dos bolsos, usando-o para absorver algumas lágrimas que pelo caminho foram correndo dos seus enormes olhos verdes. De seguida retira uma fotografia borrada de café do meio das páginas da revista, e limpa-a cuidadosamente com o mesmo lenço, guardando-a logo de seguida no bolso do casaco. Sentindo uma presença próxima, disfarça e lança um olhar para trás. A revista cai no chão.

César estava agora apenas a poucos centímetros dela com os olhos em lágrimas, claramente nervoso. Os olhos molhados dos dois encontram-se agora focados num mesmo ponto. Por segundos, o tempo parou. Antes que César esboçasse a mínima reacção, Clara invade-lhe os lábios com um beijo bruto e incontrolado, surpreendendo-o.
"Desejo-te há tanto tempo." Diz ela nos lábios de César.
"Clara… Não percebo. Ainda há pouco..."
"Shhh" Interrompe ela. "Desculpa. Tu não compreendes… fui uma parva... precisamos de falar…"
Desta vez é César a silenciá-la com um beijo profundo. Toda a raiva que sentia apenas há momentos atrás estava agora transformada em algo muito maior, mas da mesma forma incontrolável.
O momento é inesperadamente interrompido por um toque de telemóvel.
"Espera. É o meu" diz ela recompondo-se e tirando o telemóvel do bolso das calças de ganga.
César afasta-se ligeiramente, e abstrai-se de cada uma das palavras que ouve.
"Sim… Vens tarde então… Tá… Até logo... Eu também". Clara desliga a chamada. "Era o meu marido.” Diz ela sem tirar os olhos do telemóvel. E com um movimento rápido pega no seu casaco. "Desculpa. Tenho que ir!" Diz ela abandonando o escritório e deixando um suave rasto a perfume no ar.

César nem teve tempo de dizer mais nada pois estava totalmente paralisado. Sem sair do mesmo sítio, deixa-se cair sobre uma cadeira acendendo um cigarro quase automaticamente. Encosta-se, fecha os olhos e recorda o sabor de Clara e aquele aroma a maçãs verdes. Eu não acredito. Um beijo. As fotografias dela coladas na parede de sua casa tinham agora perdido grande parte do seu significado. Tudo o que lhe bastava era fechar os olhos para sentir os lábios dela, e essa sensação ia além de qualquer estímulo visual. Depois de quatro meses a sonhar com o mais ligeiro toque, o destino tinha-lhe reservado algo muito maior, um beijo desprevenido que o fez sentir alguém que nunca foi, alguém especial. Estou a sonhar. César relaxa, e sem pressa deixa-se adormecer no conforto do momento.

Clara faz sempre o mesmo caminho de carro até casa, mas raramente em lágrimas. O seu apartamento fica a cerca de quinze minutos da estação de rádio, mas desta vez estes quinze minutos pareceram uma eternidade. Nervosa com o que se passou, pensa nos motivos que a levaram a abandonar repentinamente o escritório. Perdi o controle. Desculpa. Não te posso pôr em perigo. Disse uma voz dentro dela. Ao chegar, estaciona o seu Clio mesmo à porta de casa e desliga-o. Com a mão direita tenta alcançar a sua mala no banco de trás mas sem sucesso.
“Merda. Esqueci-me da mala.” De imediato abre o porta-luvas de onde retira um porta-chaves azul. “Ufff” suspirou. Cuidadosa, mantinha sempre umas segundas chaves do seu apartamento para alguma emergência. Antes de sair, fecha o porta-luvas e olha o seu reflexo no retrovisor. Por um instante sorri.

Ao entrar em casa fecha a porta atrás de si, lançando o casaco e as chaves no chão do corredor. Entra directamente na casa de banho fechando a porta e abrindo logo de seguida a torneira de água quente que começa a correr. O vapor começa a tomar conta do ambiente. Clara vai tirando a sua roupa deixando-a minimamente organizada em cima do tampo da sanita, peça a peça. Nua, entra na banheira imergindo num nevoeiro serrado muito quente e agradável. Cobrindo todo o seu corpo de água, relaxa num conjunto de sensações agradáveis e inexplicáveis. O som da água a bater. Num instante, Clara experimenta uma outra sensação. Uma sensação que não era boa. Com duas mãos fortes agarradas ao seu pescoço Clara não consegue respirar. Tenta soltar-se, luta durante uns segundos, mas sucumbe acabando por desistir sem forças. Em serenidade, Clara deixa-se levar naquele imenso oceano e descobre uma nova sensação, a última que viria a sentir. A sensação de morrer.

No mesmo instante, César acorda de um sonho profundo. Ao abrir os olhos, vê a mala de Clara em cima da secretária.

domingo, 22 de abril de 2007

Capítulo VII

Pedro ficou de olhos arregalados tentado ouvir o que se passava do outro lado. Nada!
Marta mencionou abrir a boca, mas deteve-se ao levantar do dedo indicador de Pedro como se colocado sobre os lábios dela. Ficou frio de repente como se uma porta tivesse sido aberta e lá fora fosse Inverno:

- Isto está mau! -Disse Pedro.
- Que foi?
- Pelo que percebi Bernardo foi apanhado.
Quase gritando - Hem? Como apanhado? Por quem?
- Pela máfia. Nem fugindo para Espanha se safou. O que terá acontecido?
- Há aqui qualquer coisa que não está bem!
- O quê? - neste momento, Pedro, pousa o telemóvel como se deixasse de ser importante e endireita-e no sofá. - Explica-te!
- Tudo isto é esquisito. Há aqui uma montanha de coisas que me cheiram mal.
- OK! Sou todo ouvidos.

Neste momento, Marta começa a andar pela sala olhando para o chão e a falar com o braços como se espantasse moscas:

- Primeiro! Fui eu que reservei o bilhetes de avião. Se Bernardo foi para Barcelona... terá comprado os bilhetes com o próprio dinheiro numa altura que não sei qual, pois não vi nenhum pagamento extra.
- Desculpa?
- Depois nunca dei por nada de história nenhuma de vícios de jogos ou outra treta que seja. O homem só tem dois vícios. A empresa e a pesca.
- ..errr... sim... - Pedro sorria.
- Ainda mais. Eu como de inteira confiança de Bernardo, tenho na minha posse todas as chaves do seu escritório. Até do cofre!... E nunca vi nada de suspeito. Em tantos anos, nunca suspeitei ou cheirou-me o quer que seja. As contas da empresa estão imaculadas. Uma empresa deste tipo é muito bem vigiada pelas finanças.
- ... pois...
- E porque me mostraram isto a mim? Qual é a minha mais valia? Quem sou eu nisto tudo? Bernardo quer denunciar a máfia ? E vem ter comigo um advogado torrado cheirando a maresia com uma história de dossier confidencial a quem tenho que dar um envelope... e mais não sei o quê?... Ná! Desculpa. Há aqui qualquer coisa que não está bem!
- De onde tiraste isso tudo, Marta? Sabes que envelope era o que me entregaste?
- Claro que não! Fiquei intrigada, mas não são contas do meu rosário.
- Estás-me a dizer que não acreditas em nada destas provas, e tudo o que te disse?
- Sinceramente... não sei! Mas sinto algo a dizer-me que não! Alguém se esqueceu de colocar o sal na panela!
- Sal? Panela? - Pedro levantou os sobrolhos, como se os olhos quisessem saltar.
- Esta história sabe-me mal. Não a engulo.
- Essa história do bilhetes... não percebi!
- Como já te tinha dito, sou da inteira confiança de Bernardo, e como tal tenho acesso aos códigos das contas on-line. Fui verificar. Até à data... não vi nada de extraordinário.
- Bem! As contas demoram a actualizar. - Pedro conteve um riso.
- NÃO!... Pára! Conta-me realmente o que se passa!

Pedro pega no telemóvel. Marca um número pré-estabelecido... Espera uns segundos...

- Estou!? Sim! É extraordinário, de facto. Mas não deu para ver muito. Achas mesmo que pode ajudar? É arriscado! - uma pausa – Achas? Devo avançar portanto? - outra pausa – riso – Tudo! Foi fácil! O peixe não picou! Mas já desconfiavas?... Sim está bem! Depois contas-me? OK!... Passamos então à fase dois? - suspiro – OK! Assim espero! Já lá vão 3! Abraço e cumprimentos ao Professor. Está bem! Serão entregues!

Marta vê Pedro guardando o telemóvel no bolso. Este olha para ela com admiração. Realmente já tinha conhecido muitas mulheres, mas esta tinha algo que o fascinava muito. A atitude. Aquele ar de amazona e ao mesmo tempo de menina.
Marta começa a falar como um se tratasse de uma andamento de uma obra de um mestre de musica clássica. Começando em piano e acabando em fortíssimo:

- Queres fazer o favor de me EXPLICAR O QUE ESTÁ ACONTECER?
- Tem calma! Bernardo manda cumprimentos!
- Hã?
- Tenho uma proposta para te fazer. Queres vir comigo a Lisboa?
- ... Devo estar doida! Lisboa? Proposta? MAS QUE PORRA...
- Tem calma moça! Olha as rugas!
- Olha lá, meu badameco. Se julgas que gozas comigo em pego nesta jarra e parto-te... - Marta pega numa jarra, aparentemente de cristal...
- HEY! Isso é caro! Tem calma! Eu explico. Anda vem comigo. Poisa lá isso antes que partas alguma coisa.
- Se tu... - nesse momento Marta sente o braço dela seguro por algo estranho. A jarra cai da mão... Pedro voa atirando-se para o chão a tempo de evitar o desastre. Senta-se e ordena:
- Pélé! Larga o braço da senhora!
- Grrrrrr!
- Péléééé!!!

Péle larga o braço de Marta. Fica sentado a olhar fixamente para ela como se à espera de mais um movimento em falso!

- Peço desculpa por Pélé!
- Está bem! Eu pedi as estribeiras! Posso ir lavar o braço ao WC?
- Sim! - rindo! - Pélé! Fica! Deixa a senhora ir à casa de banho sozinha! Ela não precisa que lhe segurem a mala!
- ... piada! Tem uma piada! Palhaços! - falando para o cão - E tu? Estás a olhar para onde? Lavaste os dentes, ao menos?

O pequeno Smart descapotável fazia as curvas com suavidade dirigindo-se a Lisboa!

- Pedro! Conta-me lá então...
- Bem, Marta! Bernardo efectivamente está em Dhaka. Foi ele que me contou as tuas estranhas capacidades.
- Capacidades?
- Sim! Tu és capaz de perceber quando alguém mente ou está a tentar enganar-te! Quando fazes as entrevistas para conceder o crédito tu tens uma capacidade estranha de perceber de como são as pessoas que estão do outro lado. Se são de confiança ou simplesmente ou burlões a tentar sacar dinheiro fácil com fachadas de empresas que mais tarde dão em falência.
- Sim! Talvez!
- Bernardo acha mais! Acha que tens mais do que isso! E este pequeno esquema demonstrou tal!
- Cada vez mais embaralhada!
- Já vais perceber. Tu facilmente percebeste que havia qualquer coisa errada! Qualquer coisa que não cheirava bem na história que te contamos. Não ficaste desnorteada. E pelo que me disse Bernardo... já se apercebeu disso noutras alturas.
- Noutras?
- Sim! Um dia, sem saberes porquê seguraste Bernardo quando iam a atravessar a passadeira quando o sinal estava verde. Nesse preciso instante passou um carro que não respeitou o sinal vermelho. Como sabias que vinha lá um carro?
- ...errr... lembro-me disso! Não sei! - Marta começou a sentir-se incomodada no assento do carro.
- Pois. Portanto... vou levar-te a um sítio onde estão a precisar MUITO de toda a ajuda possível. E pode ser que tu possas dar algum contributo.
- eu... eeeu?
- Sim! Tudo o que eu te disser a partir de agora fica para ti. Certo? Pela confiança que Bernardo tm em ti!
- ... isto está cada vez pior! Ok! Certo!
- Neste momento a Polícia Judiciária está a abraços com um Serial-Killer. E suspeita-se que já matou por 3 vezes.
- Fo... xiça! Serial-Killer? A sério? - Marta sentiu a cara ferver. - E aonde vamos?
- À Judite!
- Judite?
- Eles querem falar contigo.
- Comigo?
- Sim! Querem evitar a todo o custo que surja a 4 morte. Existe de facto um dossier que, se chegarmos a um consenso, vais passar a usa-lo como leitura de cabeceira. Mas primeiro temos que ter a certeza que os podes ajudar ou se não és somente mais uma moça espertalhona.
- Ajudar? Tipo vidente? Medium? Não andam a ver muitos filmes?
- Não! Isso existe de facto e dão grande ajuda a resolver casos destes.

Marta sentiu o coração a acelerar.
Sentiu algo estranho.
Sentiu que se aproximava algo que lhe metia medo mas a fascinava.
Sempre gostou do que fazia porque sabia que estava a ajudar os outros.
Sentia-se bem, mas queira mais! Ajudar ainda mais.
Nunca se tinha apercebido das “capacidades” que agora lhe indicavam que tinha! Que loucura! Ela! Percepção Extra Sensorial?
Realmente era e sempre foi muito intuitiva. Mas PES? Estava muito longe de pensar tal! E até nem acreditava muito nisso... até agora:

- Mas preciso de alguém que me guie nesta coisa, se é que tenho esta coisa.
- De facto. Mas tem calma. Está tudo pensado. O comissário é muito eficiente!

Marta levantou a cabeça para apanhar um pouco mais dar ar na cara. Queria ter a certeza que estava acordada.
Subiu o som do rádio.

Queen's of the Stone Age - No one knows.

Pareceu-lhe própria para o momento.
Pedro olha para ela e sorri:

- Vai correr tudo bem! Vais ver!

--//--

Clara, depois de mais um turno, estava sentada no bar da estação de rádio, a ler uma revista e a beber o seu, bem merecido, café.

- OLÁÁ!

Clara soltou um grito de sobressalto. O café entornou-se encharcando a revista.

- Bolas César! Apareces assim por cima da revista sem aviso. Quase morri de susto.
- Desculpa! - César tentar limpar a revista. Foi sem querer. Queria somente cumprimentar a minha querida colega.
- Que bruto. Esta revista nem é minha.
- Eu compro outra.
- Esquece! Eu compro. Vê lá se para a próxima tens mais cuidado.
- Posso ajudar-te?
- Não! Deixa! Eu trato disto.
- Desculpa!

Já a sair do bar – Pois! Está bem! Mas que estupidez! Só me saem duques!

César sentiu-se confuso. Não sabia se havia de ir atrás dela se ficar. Segurou a chávena entornada. Observou-a com lágrimas nos olhos.
Ela não compreendia!
Ela desprezava-o!
Como o podia desprezar? Ele fazia-lhe dedicatórias, coisa que aquela aventesma do marido de certeza não fazia.
A raiva foi-se instalando. Os nós dos dedos começaram a ficar brancos em volta da chávena de café. Ouviu-se um “crack” .
Estacou.
Olhou em volta. Pousou a chávena devagar. Esta, abriu-se em duas.
Disfarçadamente volta a pegar nela, envolve-a num guardanapo e ao sair do bar coloca-a dentro do caixote do lixo de modo que não fizesse barulho ao cair lá dentro.
Olha nos dois sentidos do corredor e decide ir pelo lado que Clara seguiu.

sábado, 21 de abril de 2007

Capítulo VI

Pedro atende o telefone e é recebido com tensão por parte de seu amigo Bernardo Teixeira.

-O que disseste à Marta? diz Bernardo em tom autoritário, sua voz fraqueja em nervosismo.
-Então pah que maneiras são essas!? Apenas lhe transmiti o que tinhamos combinado.
-Porra mas tens mesmo a certeza disso?
Recebi um telefonema peculiar da Marta e desde então não a consigo contactar se pudesses descobrir o seu paradeiro era muito importante.
Sabes o que isto tudo pode provocar não sabes?
-Sei sim Bernardo mas não te preocupes vou encontra-la e ter uma conversa com ela.

Após o telefonema de Bernardo, Pedro não conseguiu disfarçar a sua inquietação perante o desaparecimento de Marta.
Desde que a vira sua vontade de a ter crescia a cada dia, gostava dela e ele o sabia.
Pedro era conhecido por amar muitas mulheres mas aquela era especial, diferente a seus olhos, ele não a queria como mais uma amante ele queria-a para si, apenas sua.
Medo e tristeza invadiram logo seu coração pois temia que Marta estivesse metida em sarilhos.
O silêncio acusador remete para a caixa de cartão pousado em cima da mesa, era ali que estavam as provas.
Entre o vermelho viscoso do seu sangue que fervilhava em suas veias e o terapêutico som da sua voz, preferiu estar calado.
O silêncio fica-lhe bem dá-lhe asas, e ocasionalmente, desinquieta a alma, por isso parou.
Seu corpo pesado de sentimentos caiu no sofá e sua cabeça pesada de consciências asfixiantes sentiu a almofada e parou para pensar.
"Onde estaria Marta, o porquê do seu desaparecimento, será que ela o olhava como ele desejava" todos estes pensamentos flutuavam na mente de Pedro.
Recordava a suavidade de sua pele, o jeito engraçado como mordiscava o lábio devido ao nervosismo, os seus lábios, os lábios que tanto desejava beijar...
Pedro enlouquecia por tanto a querer e não poder.

Decidido a encontrar Marta vai até sua casa e para seu espanto ela abre a porta, tinha evitado falar com Bernardo pois suas realidades tinham sido destruídas naquele almoço acompanhado a bacalhau.

-Entra. disse ela fitando-o seriamente para tentar desvendar as suas intenções com a visita inesperada.
Queres tomar algo?
-Não, estou bem. Porque não atendes as chamadas estás a evitar-me?
-Sabes que fiquei chocada com o que descobri. Como me esconderam isto?!
-Marta compreende as oportunidades surgem e existe uma rede poderosa por trás disto tudo.
-Não tinham o direito...
-Pois não, mas o Bernardo caiu na rede.
-Mostra-me a caixa!
-Está em minha casa acompanhas-me e mostro-te.

Então assim juntos rumaram até casa de Pedro.

Dentro da caixa estava um envelope amarrotado dentro desse envelope documentos e contas da netcabo eram protegidas por secretismo.
Marta as olhou e tristemente pediu a Pedro que lhe contasse como tudo acontecera.
Calmamente Pedro se sentou no sofá e respirou fundo, olhou para Marta e iniciou a explicação.

-Há quase 5anos que Bernardo Teixeira tinha tido problemas com o jogo, era viciado e precisava de dinheiro fácil para alimentar seu vício e que melhor maneira de o fazer do que se envolver em negócios ilícitos.
Bernardo Teixeira tinha um primo na Amadora que conhecia um grande senhor da máfia cigana que lhe iria permitir ganhar o tal dinheiro desejado então começou a entrar em esquemas e a importar e exportar mercadoria manhosa.
Bernardo Teixeira envolveu-se numa rede de ciganos que vendiam dvd's e cd's gravados e ajudava a colocar as mercadorias nas melhores feiras de Portugal, tendo sede em Carcavelos.
Posteriormente a rede mafiosa de ciganos vendedores de cd's aliou-se a um grupo de rebeldes marroquinos que vendiam flores em bares tornando-os mais fortes, por isso Bernardo nunca conseguiu sair da rede Marta.
Percebes?
Se tentasse sair seria morto ou pior, obrigado a vender "tápêtxi" ou "frôr" pelas ruas durante o resto da sua vida!!

Entretanto o telefone de Pedro toca e é Bernardo do outro lado.
-Pedro! Ajuda-me eles descobriram! (ouve-se um barulho ensurdecedor e a chamada cai)

sexta-feira, 20 de abril de 2007

Capítulo V

O Sol desperta envergonhado, mas ainda é cedo. O despertador toca, são 07H16. "It's surf time". Sim... Pedro é um entusiasta do surf, desporto que pratica religiosamente desde os seus 17 anos. Ele sabe que ainda tem tempo antes de rumar ao trabalho. É advogado na firma do pai: A Madureira & Filho ltd.

Veste o calção verde e a t-shirt branca em ligeiros tons de azul e dirige-se para a sua fiel companheira de sempre, a sua prancha que o Tio António lhe trouxe da Austrália.
Não tem que andar muito até à praia. Pedro mora na Ericeira, numa bela casa de praia, que outrora pertencera a um ex-ministro da era Salazar.
E ali está ele, em frente ao seu "santuário" preferido, pronto para fazer a sua "oração" com as ondas. Não é pro, mas sabe o que faz e durante hora e meia Pedro desfruta cada onda como se fosse a última. E é ali que ele se revela. Forte, dinâmico e vigoroso, como se fosse o homem mais importante do mundo. Ali é feliz...

Já fora de água, senta-se de frente para o mar e contempla toda aquela maravilha da natureza, como de um Dali se tratasse. O ladrar do seu cão interrompe-o. É Pelé e está com fome.
Pedro desloca-se calmamente até ele e serve-lhe um belo pequeno-almoço saído dos pacotes enormes que compra todos os meses no mini-mercado da Dona Elisa. Deixou de ladrar...
Está na hora do banho, mas antes tem de cumprir mais um ritual das suas manhãs. Dirige-se à sua enorme estante de cd's e durante 40 seg. escolhe a banda sonora perfeita para o seu banho. Hot Fuss dos The Killers é o cd escolhido.
A música começa...

"We took a walk that night, but it wasn't the same
We had a fight on the promenade out in the rain
She said she loved me, but she had somewhere to go
She couldn't scream while I held her close
I swore I'd never let her go
Tell me what you wanna know
Oh come on, oh come on, oh come on
There ain't no motive for this crime
Jenny was a friend of mine
So come on, oh come on, oh come on..."

Finalmente a água escorre pelo seu longo e estreito corpo e com toques suaves vai passando o shampoo pelos seus ondulados cabelos. Pedro aprecia bastante estes momentos. Cada acorde, cada passagem das mãos pelos cabelos, cada refrão, tudo parece uma enorme coreografia, feita com grande precisão.
Torneiras fechadas, toalha no corpo. O quarto é o destino que se segue.

"Looking back at sunsets on the Eastside
We lost track of the time
Dreams aren't what they used to be
Some things sat by so carelessly
Smile like you mean it
Smile like you mean it..."

O telemóvel toca. É Bernardo Teixeira, seu grande amigo.

Capítulo IV

Vê pela janela da sala de convívio que o sol começa a clarear a manhã dessa sexta-feira. Este seria o seu último cigarro antes do turno começar, mas não o consegue saborear. Eles estariam juntos nas próximas três horas, e não havia maneira de diminuir a ansiedade que sentia quando estava perto dela.
Ouvia a conversa dos colegas como se fosse um ruído, pois a única coisa que conseguia fazer era sentir o perfume inebriante da sua colega de equipa. Depois de muito procurar, ele finalmente havia encontrado na perfumaria a fragrância que ela usava. Fresco, maçã verde, “Be Delicious”. Não resistiu à tentação de comprá-lo.
“César”. A voz dela era como um veludo. Trouxe-o de volta à realidade. Mas será que ele queria fazer parte daquela realidade? Não era muito melhor fantasiar? A fragrância de maçã verde no seu travesseiro e as fotos nas paredes do seu quarto levavam-no para um mundo do qual ele não queria sair.
“’Tás bom?”. Este era o ponto alto do seu dia. Aqueles olhos verdes a olharem dentro dos seus, aquele sorriso, aqueles cabelos leves e macios. Como gostaria de tocar a sua pele. Estava bem sim. Bem por estar com ela.
“Hoje escolhi uma música especialmente para ti, Clara.” Ele sabia que aquela era uma das suas músicas preferidas. Já tinha lido algo sobre isso no seu blog. Ela chegou a perguntar qual era, mas ele só conseguiu dar um sorriso sem graça. Ela perceberia?
O programa estava a correr bem, como sempre. Ela comandava-o lindamente, e ele seguia-a, apenas. Pareciam entender-se como se já trabalhassem juntos há alguns anos, mas no entanto ele só estava ali há quatro meses. Já havia tanto tempo? Lembrava-se nitidamente do aperto no estômago que sentiu logo na primeira vez que a viu. Clara, suave, angelical.
“Vamos ouvir a música Shoot me Down, dos Boy Kill Boy”. Esperava ansiosamente por uma reacção da parte dela.
“Esta música é fantástica, daquelas que me faz cantar a plenos pulmões. É das minhas preferidas...”. Ele sabia. Gostava de lhe agradar. Gostava de saber que ela o achava gentil e amável, apesar dos outros colegas dizerem que ele era muito reservado e anti-social. Gostaria de poder tratá-la como ela merecia ser tratada.
“Eu sei.” Teria dito num tom audível? Não sabia e não se importava. Estava hipnotizado por aquele sorriso. Somente alguns segundos depois lembrou-se que era preciso carregar num botão para que a música começasse. Mas já nada mais importava…ela estava a cantar! Achava que se ela não percebesse a mensagem desta música, certamente perceberia a da música seguinte. Dedicar “Chasing Cars” dos Snow Patrol era quase como dedicar um poema.
Quando ouviu o refrão, ela olhou-o nos olhos. Teria percebido?
Ela não foi a mesma durante o resto do programa. Estava distante, pensativa. Anunciava as músicas como se não estivesse a prestar atenção no que estava a dizer. Não parecia triste, mas também não estava feliz. Que estupidez pensar que ela também sentiria algo por ele. Logo por ele!
“Até amanhã”. Ela esboçou um sorriso, mas não respondeu. Seu marido já estava a segurar a porta do elevador. Homem de sorte. Só queria que ele desaparecesse. Talvez um dia tratasse deste assunto, mas não agora. Não queria ver tristeza naqueles olhos verdes. A menos que não houvesse outro remédio.

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Capítulo III

Perdida num turbilhão de pensamentos, Marta não dá pela presença sorrateira da sua colega Verónica, que traz um dos telemóveis do escritório na mão.
“Toma” diz a colega com ar de desconfiada e a espreitar para o jornal pousado em cima da secretária de Marta. “É o chefe, está no Aeroporto e quer falar contigo antes de embarcar no voo”.
Bernardo Teixeira é o Presidente da Direcção da Associação Nacional de Direito ao Crédito (ANDC), que implementou o sistema de Microcrédito no nosso país. Marta orgulhava-se de estar na equipa que fundou em 1998 esta associação e, desde então, sentia um crescente sentimento de satisfação por ajudar a realizar os sonhos e os projectos de algumas pessoas. Os seus sonhos, no entanto, estavam por realizar.
“Estou?” anuncia Marta com uma voz trémula, ainda não completamente alienada da frase que acabara de ler no jornal e na curiosidade que a mesma lhe tinha despertado.
“Marta, tem o telemóvel desligado!” sentencia o chefe, com uma voz forte, sinal de controlo. É ele quem manda.
“Desculpe Bernardo, o meu telemóvel ficou sem bateria e está a carregar”, Marta tinha alguma confiança com o chefe. Foram ambos colegas de universidade, embora existisse uma diferença de treze anos de idade entre ambos. Ficaram amigos desde então, embora a sua relação no escritório fosse estrita e meramente profissional. Bernardo fazia questão que assim fosse.
Fechou os olhos para tentar esquecer por momentos a frase que ecoava na sua cabeça. Tentou concentrar-se no telefonema.
“Marta, ontem à noite deixei na gaveta da minha secretária um envelope fechado. Vai passar aí no escritório uma pessoa, um homem, antes da hora de almoço, para o ir buscar.” Fez um compasso de espera. Ao fundo ouvia-se o ruído característico dos aeroportos. “Faça-me o favor de lho entregar.”
“Sim, Bernardo”. Marta sabia que apenas ela podia entrar no gabinete do Presidente quando ele estava ausente. Bernardo havia-lhe confiado as chaves de todas as gavetas da secretária e armários para quando fosse necessário. Hoje iria ser necessário.
“Só mais uma coisa Marta” disse, baixando o tom de voz e falando de uma forma não tão forte e decidida. “Este homem de que lhe falei chama-se Pedro e para além de ir buscar esse envelope vai entregar-lhe um dossier confidencial.” Marta escutou com atenção, mas ficou intrigada.
Fez-se uma pausa na qual o turbilhão de ideias voltou para a inquietar ainda mais.
“Percebeu?” A voz forte e decidida estava de volta.
“Certo Bernardo, faça uma boa viagem”.
Carregou no botão vermelho do telemóvel e suspirou. Olhou para o quadro que estava exposto na parede em frente à recepção. Era um retrato do Professor Muhammad Yunus, Prémio Nobel da Paz deste ano. O orgulho e a motivação da Associação para a qual trabalhava. Bernardo Teixeira e todos os outros presidentes e directores de associações e empresas ligadas ao Microcrédito em todo mundo estavam a caminho do Bangladesh, para o encontro anual na sede do Grameen Bank, em Dhaka, capital do país.
Decidiu ir tomar um café para despertar.
Ligou a máquina e viu o líquido escuro a cair na sua chávena. De repente lembrou-se que iria ter uma reunião importante às 14.00 horas com um pequeno grupo de amigos no desemprego que tinham decidido criar uma empresa de transporte de crianças em Setúbal.
Vinham expressamente da cidade sadina entregar uma série de documentos necessários ao pedido de empréstimo para a implementação do seu projecto. Marta era a coordenadora do processo.
Sentou-se, fechou o jornal e por momentos esqueceu-se da sua procura do amor entre os dois locutores de rádio.
A manhã foi passada entre papéis, telefonemas e e-mails. Por vezes, Mário, o brincalhão mas aplicado Tesoureiro, metia-se com ela. Mas Marta estava demasiadamente absorta no seu trabalho. Respondia aos piropos do colega com um sorriso, mas não mais do que isso.
Olhou para o relógio e verificou que já passava das treze horas. Todos os colegas, com excepção de Verónica, que continuava ao telefone há mais de uma hora, tinham ido almoçar.
Marta esperava pelo tal homem a quem tinha de entregar o envelope fechado a pedido do chefe. Estava curiosa relativamente ao “dossier confidencial” a que Bernardo tinha feito referência no telefonema do aeroporto de Lisboa.
“O que será?” Disse para si mesma.
Levantou-se para ir pela enésima vez ao WC que ficava ao fundo do escritório, mas a meio caminho foi interrompida pelo toque da campainha da porta. “Deve ser o tal Pedro” pensou e foi abrir a porta.
À sua frente surgiu um homem alto. Cabelo castanho claro e uns profundos olhos verdes que depressa cativaram a atenção de Marta. Aparentava ter cerca de trinta e cinco anos. Não muito mais do que isso.
“Olá, boa tarde. Chamo-me Pedro Madureira e venho ter com a Dra. Marta Vieira”. Disse num tom jovial e com um leve sorriso nos lábios, visivelmente impressionado pela beleza da mulher a quem se estava a dirigir.
“Sou eu. Vem buscar o envelope do Dr. Bernardo Teixeira?” Marta quase que gaguejou, mas conseguiu responder sem se atrapalhar em demasia.
Pedro continuava a pousar aqueles profundos olhos verdes em Marta, sem conseguir desviar o olhar dela.
“Venho, sim” disse num tom suave. “Mas venho também falar consigo. Já almoçou?”. Aquela pergunta, sendo obviamente um convite para almoço feito de uma forma indirecta, apanhou Marta desprevenida.
Levou a mão ao cabelo e, desta vez, não evitou o gaguejar.
“Huh… sim, quer dizer… não. Tenho estado aqui à sua espera.”
“Peço desculpa nesse caso.” Disse, algo embaraçado. “Aceita o meu convite para almoçar comigo para podermos falar mais à vontade?”
Desta vez, o convite era directo. Como recusar um convite destes, vindo de um estranho, sem deixar de ser simpática?
“Huh… era suposto o Sr. Pedro trazer um dossier para o Dr. Bernardo Teixeira não era?”
“Bem, na verdade o conteúdo do dossier é motivo pelo qual eu pretendo falar consigo. É do seu interesse”.
Desta vez Marta, não sabia o que pensar. Mas afinal o que poderia ela ter a ver com aquele dossier? Ainda por cima, “confidencial”, como havia dito Bernardo ao telefone.
“Desculpe, não estou a perceber” disse, esquecendo por momentos o encanto dos olhos de Pedro. “Afinal o dossier não é para o Dr. Bernardo? Ele está a caminho de Dhaka para…”
“Não, Dra. Marta!” interrompeu Pedro de rompante. Parecia saber o que estava a dizer. “A viagem desta manhã do Bernardo tem outro destino”
“Mas, qual destino?” Perguntou Marta algo perturbada com a afirmação daquele desconhecido. “Como sabe o senhor isso?”.
“O Bernardo apanhou um voo para Barcelona. E não foi para tratar de assuntos da Associação, garanto-lhe”. Pedro concede alguns instantes a Marta para que esta se recomponha. “Está a ouvir, Dra. Marta?”
Em oito anos de presidência da Associação, Bernardo nunca tinha faltado ao encontro anual com o Professor Muhammad Yunus.
“Estou, mas… eu tenho uma reunião daqui a quarenta e cinco minutos...”
“Venha comigo, por favor. Não receie nada. Pode confiar em mim.” Falou num tom seguro, mas suave. “O Bernardo está a par de tudo.” Pousou a mão forte no ombro de Marta que estava com a boca aberta sem saber o que dizer.
Por fim perguntou “Gosta de Bacalhau com natas?”

quarta-feira, 18 de abril de 2007

Capítulo II

Chegou ao trabalho. Secretária a abarrotar, recados telefónicos, e-mails para responder… uma canseira. Nem parou para almoçar! E a hora de saída ficou muito para além do costume.
Só quando entrou no carro, já o sol tinha desaparecido no horizonte e imperavam os tons avermelhados do fim do dia, é que ligou o rádio e se lembrou do plano para o dia seguinte: Tinha mesmo de comprar o jornal!
Em casa foi recebida pelos miados insistentes de Becas, o gato cinzento e pachorrento que alegrava os seus dias. Enquanto este distribuía carícias nas suas pernas, os pensamentos inundaram-lhe a mente.
Afinal, o que tinha conquistado até então?
Gostava do que fazia. Não era o trabalho dos seus sonhos, mas gostava do rumo que a sua vida tinha tomado. Mas e o resto? Onde estavam todos os sonhos que tinha? As viagens, a cara-metade, a sensação de querer mudar o mundo…
A vida avançava a um ritmo igual, trabalho-casa, casa-trabalho. Os fins-de-semana eram divididos entre a visita à mãe, que tendo perdido o companheiro da sua vida, permanecia agarrada ao passado, e uma ou outra saída com alguns amigos. O mais provável era levantar-se tarde e aproveitar para dar umas caminhadas à beira mar e depois, à noite enroscar-se no sofá e ficar a ler um bom livro.
O relacionamento com Pedro, um amigo de longa data, acabou por não resultar. Afinal, eram muito diferentes, e os opostos nem sempre se atraem!
Restava-lhe a procura do amor entre dois locutores de rádio que não conhecia e cujo sentimento nem sequer tinha a certeza de existir. Mas pelo menos tinha um projecto! E afinal, já não eram horas de se perder com divagações: o dia seguinte era dia de jornal!

Acordou com a luz a bater-lhe na face. Pelos buracos da persiana escoavam aqueles fiapos de luz com os quais costumava acordar ao fim-de-semana… Olhou apressadamente para o relógio despertador e saltou da cama. 8:30! Detestava acordar assim! Foi tomar duche a correr, enquanto praguejava contra a falta de electricidade! Para quem costuma sair de casa às 7:30, este não era um bom presságio.
Que bela maneira de acordar! E ainda por cima já não ia a tempo de ouvir o início da rubrica de hoje!
No carro ligou o rádio e lá estavam eles! Divertidos e descontraídos como sempre. Mas nada de pistas, nada de silêncios envergonhados… tinha mesmo de comprar o jornal!
Chegou ao trabalho a correr, atrasada contra o costume, afogueada e sem fôlego, mas a primeira coisa que fez foi abrir o jornal. Procurou a página e começou a ler. Tinha o mesmo estilo de sempre, as mesmas curiosidades engraçadas, mas terminava de um modo que lhe pareceu revelador:

“Nesta busca incessante pelo mundo, às vezes deixamos escapar aquilo que se encontra mesmo debaixo dos nossos olhos.”

terça-feira, 17 de abril de 2007

Capítulo I

A manhã de segunda-feira começa agora a clarear. Daqui a nada vai entrar na via de acesso à cidade. Vai ser mais uma meia hora de pára arranca...
A rádio está sintonizada na estação do costume. Por entre pensamentos, desabafos e uma ou outra bolacha vai ouvindo as músicas que se sucedem, os comentários do locutor, a publicidade. A eterna e enfadonha publicidade.
Passa a hora, muda a equipa na rádio. Sai o locutor, entra um par. Ele e ela.
A partir daqui a viagem vai correr num instante. Ouve cada música e cada palavra com redobrada atenção. Procura pistas.

Na sexta-feira passada alguma coisa lhe prendeu a atenção. O locutor disse qualquer coisa do género:
- Vamos ouvir a música Shoot me Down, dos Boy Kill Boy...
Ela interrompeu-o:
- Esta música é fantástica, daquelas que me faz cantar a plenos pulmões. É das minhas preferidas...
- Eu sei - diz ele.
A voz dele parecia embevecida e comprometida.
Mais comprometido foi o silêncio que se seguiu.
Passaram-se cinco longos segundos até que a música começasse.
Achou aquela situação muito estranha. Pareceu-lhe uma espécie de declaração muito embaraçada. Muito tímida.
Logo a seguir pensou: Oh! Que parvoice! Claro que não é dedicatória nenhuma! Só ficaram sem nada para dizer e provavelmente estavam com problemas técnicos.
Quando este pensamento se diluiu na sua mente dedicou alguma atenção à letra.
You never knew never knew never knew
You never should never should never should
I needed someone, someone to be here
Always
When the sun's down, someone to pick up
Pieces
Esboçou um sorriso. Será mesmo? - Pensou com um ar divertido. - Será que ele está a declarar-se a ela?
Quando a música terminou a emissão continuou a um ritmo aparentemente normal...
No que restou de viagem continou a procurar pistas na emissão da rádio mas nada lhe pareceu significativo.

Agora ia começar mais uma busca às pistas do romance que criou na sua imaginação. O locutor da rádio estava apaixonado pela sua colega de equipa mas a timidez que impedia a declaração do amor em privado quebrava-se, ainda que de forma dissimulada, perante milhares de ouvintes.
O locutor também escrevia uma crónica semanal num jornal. Era esse o dia. Tinha decidido - Vou comprar o jornal... Quem sabe na crónica que ele escreve não aparece nada que me ilumine a investigação...