domingo, 24 de junho de 2007

Capítulo XXV

Um banho quente sabia-lhe bem, mas agora sempre que entrava numa banheira lembrava-se dela. Teria sofrido? Gostava de pensar que tinha sido rápido. Ela não merecia sofrer.
Novamente um impulso de escrever o seu nome. Desta vez foi no espelho embaciado da casa de banho. Antes tinha sido na PJ. Aquilo sim tinha sido uma burrice. Escrever CLARA no local onde tinha sido interrogado sobre a sua morte. Mas escrever o seu nome era como uma forma de tê-la ali perto dele novamente.
Via seus ferimentos por entre as letras. Um grande corte sob o olho direito e uma negra do lado esquerdo da boca. Quem diria que aquele estupor era tão forte? Mas não reagiu. Por quê? Por que deixou que Pedro lhe batesse? Por quê?
Talvez tivesse sido aquela foto da Clara com a miúda e com Diogo. Sabia que ela tinha uma filha, mas não sabia que era tão próxima do cunhado. Ela nunca falava sobre a sua vida pessoal. Na verdade, não sabia muito sobre ela, mas o que sabia bastava-lhe. Ela era doce. Um anjo.
Pensava nas suas fotos. Antes faziam-lhe companhia, mas agora não as podia ter por perto. Fizera bem em tirá-las das paredes. O seu perfume e o sabor da sua boca seriam as únicas lembranças daquele amor quase platónico.
Por agora era melhor colocar um penso rápido naquele corte. Já estava atrasado.

A sua mão alisava a superfície da chaise longue quase como um acto involuntário. O veludo suave que lhe fazia lembrar a pele de Clara. Ou como ele imaginava que fosse. O beijo foi tão rápido!
Tic, tac, tic, tac…detestava aquele relógio. Tic, tac, tic, tac. Ela já estava dez minutos atrasada. Demoraria muito mais? Não gostava de admitir para si mesmo que andava numa psicóloga, mas aquilo até sabia bem. Era sempre alguém com quem compartilhar, uma amiga.
Não tinha muitos momentos assim. Ultimamente seu único amigo era ele mesmo. Os antigos amigos não percebiam o seu amor. Não percebiam as fotos nas paredes ou o perfume de maçã. Diziam que era uma obsessão.
“Olá César. Como estás? Fizeste o teu TPC?”.
Era uma senhora elegante a Drª Sophia Dantas. Lembrava-lhe Sophia Loren não só pelo sotaque ou pela elegância, mas principalmente pela beleza. Seu sotaque não negava que vinha de Itália, mas não atrapalhava a sua atitude decidida e profissional. Ela sabia o que fazia.
“Fiz. Custou-me um bocado, mas fiz. Assim a polícia já não terá tantas suspeitas, não é? Mas não consegui deitar fora o perfume. Talvez ainda consiga, mas não agora. E qual é o mal em tê-lo comigo?”. Tinha esperanças de que ela concordasse que não havia mesmo mal nenhum.
“Tu sabes qual é o mal. Já falamos sobre isso vezes e vezes sem conta. Tu amas demais, e amar demais também é uma doença. É por isso que estás aqui. Mas se não fazes aquilo que eu te peço, se não cooperas, eu não posso ajudar-te!”. Ele sabia que era um paciente complicado até para uma pessoa com tanta experiência. Sabia que ela precisava ter muita calma e paciência. Mas porque as pessoas não conseguem aceitar um amor como o dele?
“Não quero ver-te novamente até que te livres de todas as coisas que podem lembrar-te dela. Ela está morta, César! E tu estás vivo! E ou paras com essa história de que a polícia vai perseguir-te ou mando-te para um psiquiatra para que ele te trate como um esquizofrénico!”. Levantou-se e foi até a porta, mas antes de sair perguntou “Queres dizer mais alguma coisa?”
César já não sabia o que dizer. Aquela que achava ser a sua “quase” amiga também o ia deixar, assim como os outros amigos tinham feito. Será que ele estava mesmo obcecado com aquela história? Será que o seu amor era anormal?
Decidiu contar-lhe sobre a sua visita à casa de Clara. “Estive na casa dela. Sei que era suposto não ir até lá, principalmente sendo uma cena de crime. Mas precisava de tentar perceber o que se passou. Precisava de sentir a sua presença. Precisava de ver o local onde ela morreu.”
Ela fez um ar desconsolado. Fez aquela cara de quem estava a pensar que ele era um estúpido, mas respirou fundo, manteve a calma e sentou-se novamente. “E então?”
Ele contou-lhe sobre como foi estar na casa da mulher que amava, como foi sentir o seu perfume e ver as suas fotos. “E então recebi uma sms que me dizia que o que eu estava a procurar estava debaixo da mesa do escritório! Mas não sei quem enviou nem estava a procura de nada! Já estou farto dessas mensagens misteriosas!”.
Ela bateu com a mão na mesa e levantou-se. “Acho que tenho mesmo que mandar-te para o psiquiatra! Tu andas a querer enganar-te ou o quê? Não tens ninguém a seguir-te, ninguém a mandar-te mensagens! É tudo imaginação tua! Não vês?”.
Desta vez foi ele que se levantou. Não estava a ficar louco nem estava a imaginar coisas. Sabia que a sms era real. Ou pelo menos achava que sabia! Pegou no telemóvel para mostrar-lhe as mensagens. Mensagens, Caixa de entrada, Mensagens Recebidas. Não estavam ali! Teria apagado?
Tinha que descobrir quem matara Clara. Mas como? “Volto quando descobrir o assassino”.
“Onde vais? Ainda temos muito que conversar. Quero dar-te o cartão de um amigo meu. Ele vai passar-te uns medicamentos que podem ajudar.” Mas ele não queria saber de psiquiatras. Bateu a porta.

Pensava como ia fazer para encontrar Diogo. Tinha deixado a agenda dentro da mala. Devia ter tirado pelo menos o cartão! Estúpido. Ainda procurou na sua lista de contactos do telemóvel, mas não conseguiu encontrá-lo.
O telemóvel começa a tocar, mas não conhece aquele número.
“César?”. Conhecia aquela voz, mas não lembrava de onde.
“Sim? Quem fala?”
“Vimo-nos no apartamento da Clara. Eu sou a amiga do Pedro, Marta.” Agora lembrava-se.
“Olá.” Não sabia exactamente o que dizer. Não era muito bom no que se pode chamar de relacionamento interpessoal. Nunca soube como puxar conversa. “Está melhor?”
“Estou sim, obrigada. Desculpe também por ter telefonado, mas precisava mesmo falar consigo.”
“Como conseguiu o meu número?” Seria ela mais uma investigadora? Teria ele cometido algum erro? Estariam todos à sua procura?
“Reconheci a sua voz e lembrei-me que fizeram-lhe umas perguntas sobre a Clara. Pedi à pessoa que está encarregue das investigações do assassinato que me desse o seu número. Ando a tentar ajudá-los, mas não sou polícia. Não se preocupe!” Se não era polícia, o que queria com ele?
Ela continuou. “Sei que você era colega de trabalho da Clara, mulher do Pedro. Queria falar um bocado sobre isso. Posso?”
“Ok” Essa poderia ser a sua oportunidade de descobrir mais um bocado sobre as investigações. Poderia ajudá-lo a dar mais alguns passos e descobrir quem tinha tirado a vida daquela mulher a quem ele tinha amado de forma tão plena. Poderia ajudá-lo na sua vingança.
“A Clara comentava consigo algo sobre a sua vida pessoal?”
“Não. Falávamos mais sobre o trabalho. Quer dizer, sabia que ela tinha uma filha e que era casada, mas não mais do que isso.”
“Engraçado. Li no depoimento do cunhado dela uma referência sobre o facto de vocês os dois terem ficado mais próximos nos últimos tempos.” Por que Diogo teria dito aquilo? Estaria a tentar incriminá-lo? Ou teria Clara comentado com ele sobre o amor dos dois? Que estupidez pensar que ela também o amava! Pensou no beijo.
“Não sei o que faria com que o Diogo dissesse isso. Não era verdade.”
“Mas você amava-a, certo?” Como ela sabia? Ele não tinha dito nada sobre isso. Teriam conversado com a Drª Sophia? Mas e o raio do profissionalismo? Onde estava? "Lembro-me de uma música que lhe dedicou há uns tempos: "Shoot Me Down". Pareceu-me romântico, atencioso."
“Er…Sim. Mas isso não vem ao caso! É pessoal!”
“Hum…ok. Eu não conheço o Dr. Diogo Madureira, mas sei que ele é um psicólogo. Não sabe se a Clara andava a fazer terapia?”
“Já disse que não falava sobre a sua vida pessoal.”
Repetiu para Marta tudo aquilo que já tinha dito à polícia. Mas ela diria aquilo que ele queria saber? “E vocês já têm alguma pista sobre o assassino?”
Ela pareceu hesitar antes de responder. Pareceu ponderar. “Na verdade, ainda não sabemos quem ele é. Ou ela." Ficou em silêncio por alguns segundos. No que estaria a pensar? "Parece que o trabalho foi bem feito.”
“Parece estar a esconder-me algo.” Atirou barro à parede.
“Você parece um bom homem. Parece-me que amava mesmo aquela mulher. Acho que pode ajudar-me a descobrir mais qualquer coisa.” Ela começava a abrir-se com ele. “Eles dizem que eu tenho uma coisa chamada PES. Parece que eu sei de coisas que outras pessoas não sabem. Sinto o que outras pessoas não sentem. Ontem vi o rosto de um homem na banheira da Clara. Não sei se é importante, mas senti uma coisa estranha.”. Ele deixava-a falar. “Senti medo.”
“E conhece o tal homem?”
“Er…Não sei. Achava que sim, porque conheço o seu rosto. Mas não parecia ele. A energia não era a dele.”
“Tenho de ajudá-la a descobrir o cabrão que matou a minha Clara.”

sábado, 16 de junho de 2007

Capítulo XXIV

-Tem razão. – Diz Diogo – Zurique não é, de facto, um destino de férias!... – A mente trabalhava a duzentos à hora – Mas, sabe, os grandes colóquios de Psicologia Clínica correm toda a Europa! Desta vez vou juntar o útil ao agradável. Voo até Zurique, passo lá uns dias, e depois aproveito a magnifica rede ferroviária helvética para ir até Berna, ao colóquio.
- Muito bem então! – Disse um dos polícias. Mudou o tom de voz e o rumo da conversa. – Pode definir melhor a sua própria expressão, “éramos muito chegados… mesmo depois do pedido de divórcio do meu irmão”?
- Sim, com certeza. – Diogo cruzou a perna e colocou as mãos no joelho mais alto. Sabia que o à vontade era importante. Sabia que olhar para os olhos de quem o interpelava era demonstrativo de confiança. – Como sabe, fruto do apoio jurídico que presta ao Dr. Bernardo na Associação do Micro-Crédito, o meu irmão Pedro ausenta-se do país com muita frequência. Ela era uma pessoa algo insegura sabe? Depois, mesmo não sendo psicólogo dela, até porque não era muito correcto, era, por assim dizer, uma espécie de confidente. Além disso, há a pequena Sara! A minha sobrinha é um elo de ligação muito forte entre nós. Eu gosto de pensar em mim mesmo como um segundo pai… Às vezes, porque o Pedro se ausenta, sou quase um primeiro pai…
- Compreendo. – Disse um dos inspectores. Olhou os seus colegas não vendo reacções de dúvida ou desconfiança. – Por mim, e pelos vistos pelos meus colegas também, não há mais nada a perguntar. Estamos esclarecidos. Se por ventura necessitarmos de si voltaremos a contactar. Se, por outro lado, o senhor se recordar de alguma coisa que lhe pareça relevante, não hesite em contactar-nos. – O inspector estendeu um cartão a Diogo.
- Pode descansar inspector. Assim o farei. Tenham um bom dia! Mas… antes de sair… Só uma coisa. Talvez fosse boa ideia falar com o colega de trabalho dela. Um César. Não sei se sabem quem é… Ela falava dele com alguma regularidade nos últimos tempos…
- Ah sim? Muito bem! Obrigado pela informação adicional. Faça boa viagem... E aproveite as férias! – Atirou um dos inspectores ao cruzar a porta.
Diogo fechou a porta atrás de si e foi para a sala. Por trás dos cortinados ficou a espreitar até o carro da PJ desaparecer na estrada.

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Pedro acabara de preparar a sua mochila. Não chegou, sequer a fechá-la. O toque do telefone assustou-o. – Bolas! Qualquer dia dá-me uma coisinha má! – Por momentos pensou que era o seu irmão Diogo. Tentara contactá-lo toda a tarde. Pegou no telefone e viu o número de onde procedia a chamada. Os primeiros três dígitos - dois, seis, seis - bastavam-lhe para saber quem era. Aquele indicativo era de Évora, a terra natal dos pais de Clara. Pedro atendeu e ouviu do outro lado o sotaque da mãe de Clara, a dona Beatriz:
- Pedro?
- Sim. Olá dona Beatriz. Eu tentei ligar-lhe hoje de tarde.
- Pois. Eu vi aqui… Então? Tem novidades para nos dar?
- Não dona Beatriz. Infelizmente não tenho nada… Liguei-lhe porque lhe queria dizer que passo aí amanhã para ir buscar a Sara. Quero passar uns dias com ela…
- Tem a certeza Pedro? Ela está bem aqui connosco.
- Disso eu não tenho dúvidas dona Beatriz. Eu é que estou a precisar da companhia dela… - Pedro sentiu uma vontade irreprimível de chorar.
- Está bem Pedro. Venha descansado. Nós estamos por casa.
- Ela está acordada? Queria ouvir a voz dela…
- Não. Já foi dormir. Ela e o avô foram ao monte hoje. Veio tão entusiasmada! Falou, falou, falou… Depois caiu na cama, ficou como um anjinho!
- Ela é um anjinho!
- Pois é! Vá! Descanse Pedro. Até amanhã.
- Até amanhã.

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Diogo tinha a música nas alturas. Por toda a casa ecoava o violoncelo do Prelúdio da Suite n.º1 de Bach.

Ouvia este trecho vezes e vezes seguidas. Até à exaustão.
À medida que preparava a sua mochila para a viagem Diogo revia o plano dos dias que passaria na Suíça. Chegar a Zurique de avião. Daí ir para Luzerna. Já se imaginava na Kapellbrücke, a ponte de madeira do século XIV, sobre o rio Reuss.
Depois? Bem, depois passar por Berna mas de certeza que não era para assistir a colóquio nenhum. Havia só mais um destino na Suíça. O vale de Lauterbrünnen. Um dos raríssimos sítios que conhecia onde conseguia sentir paz interior.
Sentou-se, por fim, no cadeirão. Estava exausto. Atirou a cabeça para trás. Com a mão esquerda procurou o comando para aumentar o volume. Ainda mais.
No dia seguinte Diogo saiu cedo de casa. Estaria a tempo e horas no aeroporto. Horas, minutos e segundos. Diogo era meticuloso no que a horários dizia respeito.
Já no aeroporto passou incontáveis vezes os olhos pelo relógio do painel das partidas. Só um nome o distraiu deste ritual – Florença. Este nome, associado ao de Clara, recordava-lhe um fim-de-semana escaldante na capital da Toscânia, berço do Renascimento.
A chamada para check-in despertou-o. Diogo seguiu calma e ritmadamente para o balcão.

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No dia seguinte Pedro saiu cedo de casa. Esperava estar a meio da manhã em Évora para reencontrar a sua filha. A viagem correu rápida no velocímetro mas lenta na mente de Pedro. Os olhos passaram vezes incontáveis pelo relógio do seu automóvel. Nunca mais era a hora de ver Sara.
Quando finalmente estacionou frente à casa dos seus ainda sogros prontamente a porta se abriu.
- Papá!!!! – Com um sorriso rasgado Sara correu em direcção ao pai. Nas costas uma mochilinha cor-de-rosa, com a forma da cara de uma gatinha. Nas mãos um peluche peculiar. O tigre Hobbes, o companheiro de aventuras de Calvin. Presente do tio Diogo, este peluche recordava a Pedro as suas tiras de banda desenhada preferidas.
- Girassol! – Pedro apressou-se a apanhá-la do chão. Levantou-a acima do seu olhar. O sol a espreitar por entre os cabelos soltos da filha. – Tantas saudades que o pai tinha de ti meu amor! – Deu-lhe um abraço que, a certa altura, lhe pareceu demasiado forte. Ao pé daquela pequena criança todas as preocupações ficavam minúsculas. A filha olhou sobre o ombro do pai para o lugar-do-morto, vazio. – A mamã? – Pedro fez um esforço descomunal para manter um sorriso na cara. – A mamã não pode ir girassol.
Dona Beatriz aproximou-se, carregando uma malinha nas mãos e tristeza nos olhos.
- Como vai Pedro? – Este respondeu-lhe com um encolher de ombros. – Vai-se andando… Olhe, nós vamos até Sevilha. Eles têm lá um parque de diversões. Vai ser um espectáculo, não é filhota? – Olhou de novo para a sua menina. – Siiiiiim!
O resto do dia foi passado em viagem. Pedro e Sara cantaram, jogaram e riram bastante. Os silêncios, curtos, só aconteciam a seguir às perguntas sobre a “mamã”.
Ao fim do dia chegaram a PortAventura. No quarto do hotel Pedro deitou a sua filha. Sara despertou por uns instantes. Enquanto o pai lhe aconchegava os lençóis, Sara fez o pedido de sempre:
- Papá canta a música da menina doce. Cantas?
O pedido desenhou um sorriso na cara de Pedro. - Claro meu amor. – Deitou-se ao lado dela e começou a cantar a música do seu filme preferido – Assassinos Natos - Sweet Jane.

segunda-feira, 11 de junho de 2007

Capitulo XXIII


- Marta!? Marta!? – Pedro quase teve uma síncope cardíaca quando entrou no apartamento com César e viu Marta desmaiada no chão.

- Que lhe fizeste? – Perguntou César.

- Estás doido? Eu não fiz nada! Não entraste ao mesmo tempo que eu!?

- Sim, entrei. Mas quanto ao que fizeste depois de eu ter saído já não posso dizer nada!!

Pedro praticamente o fuzilou com o olhar, “Mas o que este estúpido quer? Quem é ele para estar aqui a mandar bitaites e exigir explicações!”. Controlou a sua raiva e voltou novamente a sua atenção para Marta.

“Marta!? Marta!!”

Marta começou a ouvir a voz ao longe, já a sair do limbo da consciência-inconsciência conseguiu aperceber-se que tinha desmaiado e que precisava acordar. Ao mesmo tempo que voltava a si recordou o que sentiu e tentou lembrar-se do que viu.

Finalmente desperta, Marta abre os olhos. Por cima de si encontrou dois pares de olhos a devolverem-lhe um olhar inquisitivo. Marta não estava preparada para o que sentiu a seguir. O seu estômago embrulhou-se, sentiu vontade de chorar e o pânico tomou conta dela. Sem saber bem como pôs-se de pé e aos gritos empurrou Pedro que era quem estava mais perto de si.

- Marta! Tem calma! Está tudo bem! Sou eu, o Pedro!

Marta estava de costas para os dois mas a voz dele conseguiu traze-la momentaneamente a um estado de maior normalidade.

- O que é que ela tem!? – Perguntou César.

Marta reagiu à voz de César. Virou-se para lhe perguntar de onde o conhecia mas assim que voltou a deparar-se com o olhar dos dois homens a sua cabeça recomeçou a andar à roda.

- Tenho de sair daqui! Quero falar com o Inspector Francisco. – Sem saber bem porquê Marta arrependeu-se imediatamente de ter dito aquilo.

As feições de César e Pedro passaram de estupefacção para preocupação. - Porquê!? – Perguntaram os dois ao mesmo tempo.

- Porque preciso. – Responde Marta rispidamente já a sair pela porta fora.

... ...

Demorou apenas um quarto de hora a Francisco para responder ao chamado de Marta e ir ter ao apartamento dela. A voz dela deixou-o preocupado, ela estava assustada e desamparada. Quando entrou no apartamento apercebeu-se que Marta tinha chorado mas nada lhe disse. Sem que Marta percebesse o porquê começou a rir-se.

Marta olhou para ele incrédula – Está a rir-se de quê!?

- Desculpe Marta, mas é que não posso deixar de me lembrar da última vez que estive aqui. Aquele Scooby-Doo assustado não queria acreditar que os fantasmas dele eram apenas lençóis da cama com buracos para os olhos.

Marta sorriu. – Só o Inspector Francisco para me fazer rir nesta altura. O Mário sempre tinha alguma razão. Ele realmente estava a ser vigiado mas era uma vigia de mentirinha.

- Mau! Eu já não lhe tinha dito para me deixar o Inspector de lado? Só em situações oficiais. Mas vamos lá Marta, conte-me o que se passou.

Marta descreveu tudo o que sentiu desde que entrou no apartamento até ao momento em que praticamente fugiu de lá. Francisco não a interrompeu, apenas segurou-lhe a mão quando o sentimento de pânico parecia que ia voltar a tomar conta de Marta.

- Quem era o outro homem no apartamento!?

- Não sei. O Pedro disse que ia ter com um melro ao café. Devia ser ele.

- Bem… o Sr. Melro não nos ajuda muito – disse Francisco a sorrir para Marta.

Marta não sabia o que Francisco tinha, mas ao lado dele, ela sentia-se segura, amparada e com força para seguir em frente. A melhor forma que Marta o conseguiu descrever para si mesma é que se sentia abraçada e gostava muito do calor desse abraço.

- Pois não… Quando ele falou pareceu-me que já o conhecia de algum lado. Mas não tive forças para lhe perguntar de onde – disse Marta com um bocado de vergonha.

- Reconheceu a voz!? – Francisco apercebeu-se logo de quem poderia ser o homem – Como é que era a aparência dele?

Marta descreveu o melhor que conseguiu. – Ou muito me engano Marta ou esse era César Campos, o companheiro de Clara na rádio.

- Claro! Claro que era ele! Meu Deus como é que eu não o reconheci imediatamente!?

- Apenas interessado no dia-a-dia da rádio… está bem, está! E de repente está com Pedro no local onde Clara morreu. Como sempre o Doutor Casa tem razão… Everybody lies! Então num interrogatório são umas atrás das outras.

Francisco olhou para Marta e percebeu que mais uma vez o rosto dela se tinha fechado – Então? Que foi?

- Acho que não tenho jeito para isto, não sei se alguma vez vou conseguir fazer da PES a minha segunda natureza como diz que tem de ser. Nem o César Campos que ouço na rádio todos os dias consegui reconhecer. Entrei em pânico, até ao Pedro dei um empurrão sem mais nem menos.

- Parece-lhe sem mais nem menos Marta. Sim… o desmaio depois de ter estado na casa de banho foi uma reacção à forte emoção que sentiu lá. O corpo não estava preparado e teve quase que fazer um shutdown de emergência para lidar com a situação. Mas o que sentiu depois quando acordou… isso não. Isso não foi simplesmente ainda consequência das sensações anteriores. Está ligado a elas, obviamente. Essa sua reacção perante o olhar daqueles dois homens, ou até mesmo só de um deles, pode-nos dizer muita coisa, muita coisa mesmo. Coisas que a Marta na altura não percebeu mas às quais a sua percepção imediatamente reagiu.

Marta olhou para Francisco tentado absorver tudo o que estava embutido no que ele dizia. Desviando o seu olhar do dele Marta suspirou fortemente e diz embaraçada.

- Estou assustada! Não sei se estou à altura do que estão à espera de mim. Tenho medo de desiludir toda a gente.

Francisco puxa o rosto novamente na direcção dele para que ela o olhasse nos olhos.

- Marta. Não tens de ter vergonha nenhuma de ter medo, de estar assustada. O medo é bom, mantém-nos alerta. Só não nos podemos deixar dominar por ele. O medo tem de ser como um cão que ladra quando nos aproximamos. O latir dele alertou-nos para a presença de um perigo mas nós continuamos a andar, passamos o cão e seguimos em frente. Se ficarmos sem reacção e fugirmos, o cão pode começar a correr atrás de nós, pode até transformar-se num lobo que nos passará a perseguir.

Marta continuava a olhar para Francisco, as palavras dele tinham sido como um cobertor numa noite de Inverno. Francisco percebeu que ela estava a conseguir estabilizar as emoções.

- A parte do cão e do lobo li num livro – disse Francisco – É claro que lá estava dito de uma maneira muito mais lírica e era dito por um dos maiores e mais mortíferos guerreiros de sempre, mas acho que me safei bem.

- Obrigado. – Marta riu-se e agradeceu – Obrigado mesmo.

- Ora essa! Sempre que precisar de ajuda para enfrentar um caniche, conte comigo!

As palavras eram ditas em tom de brincadeira mas Marta sabia que não podiam ser mais verdadeiras. Sentiu a confiança dela a voltar e a voltar com mais força.

- Ok! Vamos então analisar tudo mais uma vez! – Disse Marta sorrindo para Francisco.

- Mais uma, duas, três… as vezes que forem necessárias. Mas antes tenho de comer porque estou com uma fome digna de um Obelix!

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Capítulo XXII

César teve um inesperado assomo de coragem. Ficou ali, de pé. Sentira alguém a entrar no apartamento e decidira não se esconder. Não tinha cometido nenhum crime, portanto, não tinha que ter medo. Fosse quem fosse, não lhe importava, aliás, nada lhe importaria. Neste momento da sua vida não poderia cair mais fundo. Socorreu-se das lembranças de Clara, do beijo....Um vulto estava, agora, dentro do apartamento.

Pedro decidira ir ao apartamento de Clara, para lá de alguns objectos que queria levar para si, queria investigar por si próprio o misterioso assassínio. Já dentro do apartamento, tomou um grande susto. Nunca imaginou que alguém lá estivesse. Mais surpreso ficou quando viu que era César e este o cumprimentou: "Viva, também por cá?!" Só uma ideia lhe passou pela cabeça: "o assassino!" Vermelho de fúria avançou para ele e com apenas um soco o tombou e, com ele no chão, o esmurrou sucessivamente até sentir que não reagia. Nem esboçou defesa; tinha sangue por toda a cara, proveniente do nariz e dos lábios rompidos. Apenas gritou: "odeio-te, Pedro!!"

"O criminoso volta sempre ao local do crime!", disse Pedro com a voz alterada. Procurou o telemóvel no bolso e preparava-se para ligar para a polícia... Prostado no chão, César lançou umas palavras: "Pedro, não sou eu o assassino..." De repente, ao passar os olhos pelo chão, viu uns papéis e fotografias... Meteu de novo o telemóvel ao bolso. Se anteriormente estava furioso, agora estava possesso! Clara aparecia em fotos com o seu irmão gémeo, Diogo, e com uma criança... Leu as cartas, ficou durante dezenas de minutos a ver as fotos, a reler as cartas... "O meu irmão, grande cabrão!" Esquecera-se do César: "Eh pá, o gajo ainda me vai morrer aqui!". Levantou-o do chão. Este sempre estivera acordado, porém, imóvel. Levou-o para a casa de banho e, com a água do lavatório a correr, lavou-lhe a cara. O nariz deixara de sangrar e as únicas marcas da agressão eram o nariz esfolado e cantos dos lábios rasgados.

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O bloco de notas era agora o seu companheiro inseparável. As coisas para lá do normal que conseguia ver assustavam-na. Assustavam-na mas, esse medo, tornava-se positivo. O medo mantinha-a alerta e preparada para o perigo. A capacidade de através de objectos ver factos passados era-lhe inata, embora, não tivesse consciência disso até ao momento em que foi convidada a colaborar com a polícia. Marta tinha um dom.

Marta ia ao encontro de Pedro. Ele fizera-lhe um telefonema estranho, num tom monocórdico que a deixou receosa. Mais ainda, quando este lhe disse que era urgente e que não dissesse a ninguém. Não sabia o que poderia reservar-lhe Pedro mas, mais por incapacidade de dizer não do que por curiosidade, ia ter com ele. Ia ter ao apartamento onde Clara morrera. Já lá estivera com o inspector Francisco Mesquita, isto numa altura em que ainda não tinha verdadeiramente optimizado a sua percepção extra-sensorial. Estava ansiosa. A proximidade fazia com sentisse que algo estava prestes a ser descoberto... Não imaginava o que ele queria.

Pedro estava sozinho no apartamento. César estava magoado por fora e esmurrado por dentro; descera à rua, fora tomar água a um café para limpar o sangue que ainda sentia empastado na garganta. Pedro estava desolado. Sentia-se humilhado. Agora compreendia as reacções de Clara. Compreendia as fugas. Compreendia as mudanças de assunto. Traído pelo irmão! Decidira, entretanto, talvez por pudor ou para ganhar tempo, não mostrar as fotos à polícia. Tinha-as consigo. As cartas também. Metera-as na barriga, por baixo da camisola. Ia desabafar com Marta, depois decidiria o que fazer.

Marta chegara à porta do apartamento que se encontrava semi-aberta. "Posso, Pedro?" Pedro correu ansioso para ela, "Marta, ainda bem que vieste!" Ela já não conseguia ouvir as palavras dele, algo forte fazia com que se concentrasse nas paredes do andar... nos móveis... nos objectos... " Pedro, vou pedir-te, deixa-me por momentos sozinha aqui." Pedro estava atónito, "mas o que se passa, Marta?" "Pedro, deixa-me por momentos, por favor!" Convencido, ele recuou para o vão de escada, "vou ao café ter com um melro..." "Com um melro?", perguntou ela. "Uma longa história, venho já."

Marta sentia medo. Abstraiu-se dos factores de distração. Tirou o seu bloco de notas do bolso. Avançou para o centro do apartamento, entrou na primeira porta entreaberta. Estava na casa de banho. Sentia cada vez mais medo. E, defronte da banheira, sentou-se no chão frio. Levantou-se e pousou o seu corpo, suavemente, no fundo da banheira. Estava concentrada. Estava a sentir algo... Clara na banheira. Um homem. Viu-lhe a cara mas não tem certeza de quem viu!! Sai a correr e cai sem forças na sala, não consegue mover-se...

domingo, 3 de junho de 2007

Capítulo XXI


Desde a morte de Clara que César nunca mais tinha sido o mesmo.
Seu corpo movia-se a dor e sua alma tinha partido com Clara.
O tempo tinha sido curto demais para se fazer ouvir e aquele único beijo era guardado em sua memória embrulhado em papel precioso.
Suas surrealidades o magoavam e ele tentava matar as lembranças de Clara em si, evitando pronunciar o seu nome que lhe causava tanta dor mas não passava de uma utopia porque César não a conseguia esquecer, um grande amor não se esquece.
Tinha saudades do que nunca viveu e isso matava-o ainda mais porque sentia que Clara tinha precisado dele e não conseguiu fazer nada.
Sua angústia em saber a verdade era atenuada com a tristeza dos laços que foram cortados entre si, esperou sempre que Clara lhe devolvesse os laços e quando o fez era tarde demais para o poder usufruir, a felicidade que sempre pintara em sua imaginação, quadro esse que fora estragado pela escura morte.
Morreu o amor que o atormentava por não o poder apreciar.
Não o soube viver quando era possível, sua incapacidade de reacção o condenaram a uma vida de incertezas e desejos por realizar.
Ficou apenas o sonho que lhe rasgava o peito.
Ficou apenas um corpo vazio e a frustração de não poder fazer nada.
César estava determinado a encontrar quem tinha destruído o seu mundo, e no seu mundo ele e Clara eram felizes, no seu mundo amava Clara como nunca antes tinha amado alguém.

De porta-chaves e Moleskine no bolso do seu casaco sai e resolve investigar o apartamento de Clara.
Subindo as escadas de serviço para evitar ser visto César entra em casa de Clara onde ainda consegue sentir o seu cheiro, cheiro esse inexistente mas em sua memória podia cheirar Clara em qualquer parte, ainda estava entranhada em seu corpo e como ele ainda podia saborear o seu beijo!
Ao percorrer o apartamento seus olhos rapidamente ficaram molhados e em choro desolado desejava um pequeno toque ou apenas poder olhar para o seu sorriso que tanto amava mas apenas encontrou o duro silêncio de uma casa vazia e de paredes brancas pelo nada.
César encontra o quarto de Clara onde sorri quando olha para as fotos que encontra, como ela era tontinha quando fazia estas caretas para as fotos cheia de vida mas no entanto alguém muito só.
Vasculha gavetas e nada encontra o mesmo se passa com o resto das divisões frustrado deixa-se cair no sofá.
Bip Bip!
Seu telemóvel toca e seu coração pára.

-Será que…

“César… o que procuras está por baixo da mesa do escritório”

César assustado deixa cair o telemóvel seu coração acelarado com o seu cérebro inundado de perguntas faz com que não sinta a respiração durante segundos.

-Mas…mas como é que…

Medo era agora o novo morador naquela casa antes vazia de vida.
Apesar do nervosismo criado pela sms César resolveu procurar verdade na sms procurando o que poderia estar por baixo da secretária.
Passando a mão pela macia madeira eis que encontra um envelope misterioso.
César estupefacto fica a olhar para o envelope como se algo lhe prendesse os movimentos mas por fim desaparecido o medo dando lugar à curiosidade abre o envelope.

-Mas o que é isto?!???!!!

No envelope César encontrou fotos de Clara juntamente com um homem, pareciam felizes enamorados e juntamente a eles estava uma criança com traços muito parecidos a Clara.
As fotos pareciam de uma família feliz em férias.
César pára por uns minutos numa foto, Clara e homem estavam a beijar-se, César nem queria acreditar o homem era Diogo, o cunhado de Clara.

-Mas porquê?! Eles os dois!

César não queria acreditar no estava a ver até que o envelope lhe revela mais que umas simples fotos.
No envelope dezenas de cartas de Diogo para Clara amarrotadas chamavam a atenção de César mas não eram cartas de amor pelo contrário eram cartas de teor obsessivo, doentio, violento e de tom amargo.
César nervoso pega no Moleskine de Clara e folheia até que pára.
Na data em que Clara fora assassinada tinha um encontro marcado com Diogo...

-Quem será a miúda das fotos!!

Porque raio o Diogo tinha escrito aquelas cartas ameaçando Clara se ambos pareciam felizes nas fotos!!!!

E como Clara esteve com este gajo no dia de sua morte se esteve praticamente o dia todo comigo na rádio?!? Só se depois...

Sua cabeça não conseguia raciocinar mais nada até que a confusão da mente foi novamente perturbada por um barulho, mas desta vez não foi de seu telemóvel…mas sim da porta.
César não estava sozinho alguém entrara no apartamento de Clara naquele momento…