terça-feira, 16 de outubro de 2007

Capítulo XXX

Francisco sentiu-se tonto. Estava a afogar-se em raiva, em dor, em impotência. Sentado na beira da cama, teve de se apoiar com uma das mãos. Na outra mão continuava o telemóvel a chamada não havia sido terminada. O nome de Joana estava no visor.

De um salto, Francisco levantou-se. Dentro da sua cabeça a consciência dizia-lhe que tinha de se concentrar, que tinha de ser racional, que tinha de ligar a Marta. Este telefonema fazia todo o sentido. Afinal de contas tinha de informar Marta imediatamente. A verdade, contudo, é que precisava de contar a alguém o que tinha acontecido e precisava de procurar o conforto na voz de alguém...

- Marta? - Disse Francisco logo que aquela atendeu - Preciso de ti. Prepara-te que vou passar na tua casa daqui a uns trinta minutos para te apanhar.

Marta já sabia que o inevitável acontecera. Um telefonema de Francisco àquela hora não podia significar outra coisa. Mas notou a voz do Inspector diferente:

- Com certeza Francisco. Vou preparar-me num instante... Aconteceu, não foi?

- Sim... - disse Francisco. Tinha intenção de lhe dizer que tinha sido Joana. Mas achou melhor não. - Até já...


Marta tomou um duche rápido. Enquanto o fez não conseguiu desviar o olhar do apoio da cabeça da sua banheira. Imaginava-se ali, morta. O coração batia depressa. Pensava numa cara desconhecida. Numa pobre mulher que tinha tido o azar de ser a escolhida pelo assassino. Um sentimento de pena invadiu-a.

Preparou-se rapidamente. Foi até à varanda esperar Francisco. O ar quente daquela noite de verão deu-lhe algum bem estar.

Francisco seguia no carro como se fosse um autómato. Na sua face não se produzia nenhuma expressão. A contrastar, no seu interior, o cérebro produzia hipóteses, o coração cavalgava, os intestinos embrulhavam-se.
Parou o carro em frente à casa de Marta. Não teve de esperar mais de um minuto. Esta entrou no carro e notou no rosto de Francisco aquilo que já havia notado na voz. Um inspector mais abalado do que esperaria com uma morte.
- Olá Francisco. Vamos lá caçá-lo? - disse por entre um sorriso forçado para ver se o animava. Este esboçou um sorriso que de tão leve quase não se notou.
- Vamos...
Ainda que percebesse que algo estava errado Marta optou por respeitar o silêncio do inspector. Por sua vez Francisco tentava escolher o timing certo para dizer a Marta quem tinha morrido. Como o silêncio se prolongava na viagem nocturna Marta ligou instintivamente o rádio do carro. Naquele momento passava publicidade. Marta escolheu outra estação. Ao ouvirem o jingle da rádio entreolharam-se. Era a rádio onde César trabalhava.
O destino da viagem era relativamente curto pelo que logo chegaram ao prédio onde Joana vivia. Francisco achou que aquela era a hora de contar a Marta. Antes de começar a falar, no entanto, foi a voz de Marta que se ouviu.
- Francisco... Como sabes que é aqui? Onde estão os teus colaboradores? Fomos os primeiros a chegar...
- Marta - atalhou Francisco - Anda... Vamos subir...
- Sim mas... Não esperamos por ninguém?
A resposta de Francisco ficou por dar. Desligou o carro no momento em que na rádio se começava a ouvir Estrela do Mar de Jorge Palma. Entraram no prédio, cuja porta estava apenas encostada, e dirigiram-se para o elevador. Entraram e Francisco carregou no 3º andar.
Tudo isto pareceu muito estranho a Marta. Porque não estava mais ninguém ali. Como sabia Francisco o andar? Porque lhe parecia que Francisco tomara aqueles passos como se já o tivesse feito antes? Enquanto estas dúvidas a assaltavam Marta reparou que o inspector estava virado para a porta do elevador, o olhar lá longe... os olhos marejados.
Saíram do elevador e Marta colocou-se atrás de Francisco. Ele dirigia-se a compasso para a porta que estava entreaberta, ao fundo do lado esquerdo.
- Não pegas na tua arma? E se ele ainda estiver lá? - Marta sussurrava escondendo-se atrás do inspector. Mais uma vez este permaneceu em silêncio.
Ao chegar à porta Francisco ia empurrá-la para entrar mas estacou. A mão, aberta, parou a poucos centímetros. Voltou-se para Marta e disse:
- Tens de entrar tu à frente. Temos de aproveitar o facto de ninguém ter estado aqui depois da morte.
- Mas... E se está alguém lá dentro?
- Não te preocupes... Infelizmente a única pessoa que está lá dentro não nos pode fazer mal algum... Confia em mim - Acrescentou Francisco ao ver o ar assustado e pouco convencido de Marta. - Tenta fazer o que havias feito em casa de Clara... Aquilo das rotinas...
Marta assentiu com um aceno de cabeça e colocou a mão na maçaneta da porta. Sentiu uma falta de ar repentina. Ela conhecia a mão que viu no lugar da sua. Era uma mão de mulher.
Entrou no apartamento para um pequeno hall e o perfume suave que pairava no ar fez com que falasse: - A inspectora Joana já chegou cá!
- Disse-o com algum alívio. Francisco, que havia atrás dela e observava o local e as reacções de Marta não respondeu.
Marta ouvia a música do Jorge Palma na cabeça. Estranhou. Não era música que gostasse por aí além. À medida que se deslocava na casa mergulhada numa escuridão quase completa a música aumentava de intensidade. Parou junto a uma porta e abriu-a. Mesmo não sabendo onde ficavam os interruptores Marta conseguiu acender a luz. Era um quarto. A cama estava desfeita e havia duas almofadas utilizadas e jogadas ao acaso sobre os lençóis. O pormenor que mais inquietou Marta era, no entanto, outro. O rádio-despertador estava ligado. A rádio era a mesma. A música também. Estava agora a terminar.
Marta apressou-se para desligar o despertador. Assim que lhe tocou deu um salto para trás e um grito grave. No lugar da sua via uma mão de homem. Afastou-se assustada. Segurando contra o peito a mão que se havia transformado por instantes.
Francisco assistia a tudo espantado. Também achara muito estranho o pormenor da sintonia do despertador. Ou, se calhar, não era assim tão estranho...
- A cama... - disse Francisco.
Marta ouviu-o ao longe mas percebeu. Dirigiu as suas mãos para a cama. Logo que tocou nos lençóis o ambiente do quarto mudou à sua volta. A luz estava mais suave, a música de fundo era outra mas não identificável. Na cama Marta via as mãos de homem que vira antes a percorrer um corpo feminino nu. As mãos de mulher que ela reconhecera percorriam um corpo nu masculino. Havia muito contacto. Via beijos. Via suor. Ouvia gemidos de prazer. Não tinha dúvidas de que aquelas duas pessoas tinham vividos uns momentos escaldantes. Marta sentia-se uma voyeur.
Marta corou ao olhar para Francisco. Encontrou dificuldades em explicar-lhe o que vira. A Reacção do inspector foi de estranheza.
Francisco não sabia que Joana andava a ver alguém pelo que a pergunta lhe saiu quase de imediato - Pareceu-te consentido?
- Sim... - Disse Marta que estava de novo absorvida pelo percurso que interrompera. Os seus passos foram na direcção da porta e seguiram pelo corredor até à porta seguinte. Francisco apressou-se atrás dela pensando se não seria melhor prepará-la para o que ia ver. Francisco conhecia o apartamento da sua colega de trabalho e sabia que por trás daquela porta ficava a casa-de-banho.
A dúvida na sua cabeça prolongou-se por tempo demasiado. Marta já abrira a porta. A luz estava acesa.
Ao chegar à ombreira Francisco preparou-se para ver a sua amiga morta. E esperou a reacção de Marta. Estranhamente Marta não disse nem fez nada. Parecia um sonâmbulo a caminhar em direcção à banheira. Estava tão absorvida que talvez não tivesse visto o rosto de Joana.
Marta aninhou-se ao lado da banheira e tocou no corpo. De novo as mãos do homem a acariciar o corpo da mulher ainda com vida. De novo as mãos da mulher a acariciar as mãos do homem.
Francisco assistia àquela cena em silêncio. Tinha de suportar a dor de ver Joana morta para não assustar Marta.
De repente as mãos de Marta deslizaram do ventre, pelos seios, para o pescoço. Começou a apertar e a empurrar o corpo para dentro de água. Francisco percebeu que ela estava a tomar o lugar do assassino. No rosto de Marta um sorriso assustador formou-se. Francisco agiu de impulso e correu para Marta puxando-lhe os braços para que ela largasse o pescoço de Joana. Nesse instante Marta recuperou a consciência e, ao ver o rosto de Joana, gritou e jogou-se para trás, não tendo caído porque Francisco a segurava.
Aterrorizada afastou o olhar daquela cena macabra e procurou refúgio nos braços do inspector. - Porque não me disseste? - Gritou Marta por entre soluços e lágrimas. Francisco também chorava. Finalmente podia soltar a sua dor. Ele não foi capaz de responder à pergunta de Marta mas não precisava. Esta percebia a necessidade de ser deixada às escuras.
Ficaram ali alguns momentos a chorar. Agarrados. Finalmente Francisco falou. - Vou ligar para a sede. - Disse após uma longa e profunda golfada de ar. - Quero aqui gente a tratar todos os centímetros quadrados. Tenho de apanhar este animal.
Marta estava parada no corredor enquanto Francisco ligava. A música continuava a ouvir-se no quarto. Furiosa dirigiu-se para lá. Ia decidida a desligar o despertador. A sua mão direita, de indicador em riste, tocou no off mas o que Marta viu foi a mão esquerda do homem a carregar no on. Depois olhou para o lado e viu, na outra mesinha de cabeceira, o telemóvel. Deslocou-se para lá e a mão esquerda pegou no aparelho, procurou o número de Francisco e ligou. Marta correu para Francisco. Queria ajudar e achava que tinha ali uma informação importante.
- FRANCISCO! Ele é canhoto... Depois de matar a Joana ligou o rádio e ligou para ti...
- Ligou o rádio antes de me telefonar?... Isso parece-me interessante! - Desabafou o inspector com um ar pensativo.

11 comentários:

xistosa, josé torres disse...

Nem o pai morre, nem a gente come !

Vamos começar do princípio do início e não do princípio do fim !!!

Anônimo disse...

GOSTEI MAIS UMA VEZ FICO COM A IMPRESAO QUE TEMOS LOCUTOR ASSASINO
BOA CONTINUACAO.
ABRC .

M.O

Sandra disse...

ambém gostei! depois de dias e dias à espera, bem que valeu a pena!!
quem se segue? sou um bocado distraída...

Luis Prata disse...

Excelente capítulo. Sente-se mesmo a cena dentro do apartamento.. os movimentos do assassino... Perfeito Touro ;)

Acho que sou eu o Sr. que se segue.

Peço alguma paciência aos nossos leitores pois não somos tantos a escrever como inicialmente. É normal que os capítulos demorem um pouco mais, para mais não seja porque não queremos dar passos em falso.

Beijos e Abraços

Sandra disse...

pois... passos em falso! ainda vos cai logo alguém em cima!! ;)

bom trabalho, pratas!

Eduardo Ramos disse...

Bolas!
Que se passa com este blog! Deixo um comentário e não aparece?!

Bem!
Muito bom capitulo. Cheio de tensão.
Deixa muitas perguntas no ar e estou curioso para saber o que esta casa possa ter mais para ajudar na trama.

Nathalia disse...

Muito bom :o)

susemad disse...

Gostei dos dois capítulos após o resumo. Este especialmente consegue causar uma óptima impressão. Continuem... inté

Anônimo disse...

"Ca gandas malucos !!"


bom fim de semana

Luis Prata disse...

Eu já estou a escrever o próximo, dentro de alguns dias sairá.

Abraços

Mocas disse...

Isto está a morrer...quase 1 mês sem um novo capítulo?? Assim quem morre são os leitores...de curiosidade!
Vamos lá a revitalizar isto!