sábado, 16 de junho de 2007

Capítulo XXIV

-Tem razão. – Diz Diogo – Zurique não é, de facto, um destino de férias!... – A mente trabalhava a duzentos à hora – Mas, sabe, os grandes colóquios de Psicologia Clínica correm toda a Europa! Desta vez vou juntar o útil ao agradável. Voo até Zurique, passo lá uns dias, e depois aproveito a magnifica rede ferroviária helvética para ir até Berna, ao colóquio.
- Muito bem então! – Disse um dos polícias. Mudou o tom de voz e o rumo da conversa. – Pode definir melhor a sua própria expressão, “éramos muito chegados… mesmo depois do pedido de divórcio do meu irmão”?
- Sim, com certeza. – Diogo cruzou a perna e colocou as mãos no joelho mais alto. Sabia que o à vontade era importante. Sabia que olhar para os olhos de quem o interpelava era demonstrativo de confiança. – Como sabe, fruto do apoio jurídico que presta ao Dr. Bernardo na Associação do Micro-Crédito, o meu irmão Pedro ausenta-se do país com muita frequência. Ela era uma pessoa algo insegura sabe? Depois, mesmo não sendo psicólogo dela, até porque não era muito correcto, era, por assim dizer, uma espécie de confidente. Além disso, há a pequena Sara! A minha sobrinha é um elo de ligação muito forte entre nós. Eu gosto de pensar em mim mesmo como um segundo pai… Às vezes, porque o Pedro se ausenta, sou quase um primeiro pai…
- Compreendo. – Disse um dos inspectores. Olhou os seus colegas não vendo reacções de dúvida ou desconfiança. – Por mim, e pelos vistos pelos meus colegas também, não há mais nada a perguntar. Estamos esclarecidos. Se por ventura necessitarmos de si voltaremos a contactar. Se, por outro lado, o senhor se recordar de alguma coisa que lhe pareça relevante, não hesite em contactar-nos. – O inspector estendeu um cartão a Diogo.
- Pode descansar inspector. Assim o farei. Tenham um bom dia! Mas… antes de sair… Só uma coisa. Talvez fosse boa ideia falar com o colega de trabalho dela. Um César. Não sei se sabem quem é… Ela falava dele com alguma regularidade nos últimos tempos…
- Ah sim? Muito bem! Obrigado pela informação adicional. Faça boa viagem... E aproveite as férias! – Atirou um dos inspectores ao cruzar a porta.
Diogo fechou a porta atrás de si e foi para a sala. Por trás dos cortinados ficou a espreitar até o carro da PJ desaparecer na estrada.

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Pedro acabara de preparar a sua mochila. Não chegou, sequer a fechá-la. O toque do telefone assustou-o. – Bolas! Qualquer dia dá-me uma coisinha má! – Por momentos pensou que era o seu irmão Diogo. Tentara contactá-lo toda a tarde. Pegou no telefone e viu o número de onde procedia a chamada. Os primeiros três dígitos - dois, seis, seis - bastavam-lhe para saber quem era. Aquele indicativo era de Évora, a terra natal dos pais de Clara. Pedro atendeu e ouviu do outro lado o sotaque da mãe de Clara, a dona Beatriz:
- Pedro?
- Sim. Olá dona Beatriz. Eu tentei ligar-lhe hoje de tarde.
- Pois. Eu vi aqui… Então? Tem novidades para nos dar?
- Não dona Beatriz. Infelizmente não tenho nada… Liguei-lhe porque lhe queria dizer que passo aí amanhã para ir buscar a Sara. Quero passar uns dias com ela…
- Tem a certeza Pedro? Ela está bem aqui connosco.
- Disso eu não tenho dúvidas dona Beatriz. Eu é que estou a precisar da companhia dela… - Pedro sentiu uma vontade irreprimível de chorar.
- Está bem Pedro. Venha descansado. Nós estamos por casa.
- Ela está acordada? Queria ouvir a voz dela…
- Não. Já foi dormir. Ela e o avô foram ao monte hoje. Veio tão entusiasmada! Falou, falou, falou… Depois caiu na cama, ficou como um anjinho!
- Ela é um anjinho!
- Pois é! Vá! Descanse Pedro. Até amanhã.
- Até amanhã.

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Diogo tinha a música nas alturas. Por toda a casa ecoava o violoncelo do Prelúdio da Suite n.º1 de Bach.

Ouvia este trecho vezes e vezes seguidas. Até à exaustão.
À medida que preparava a sua mochila para a viagem Diogo revia o plano dos dias que passaria na Suíça. Chegar a Zurique de avião. Daí ir para Luzerna. Já se imaginava na Kapellbrücke, a ponte de madeira do século XIV, sobre o rio Reuss.
Depois? Bem, depois passar por Berna mas de certeza que não era para assistir a colóquio nenhum. Havia só mais um destino na Suíça. O vale de Lauterbrünnen. Um dos raríssimos sítios que conhecia onde conseguia sentir paz interior.
Sentou-se, por fim, no cadeirão. Estava exausto. Atirou a cabeça para trás. Com a mão esquerda procurou o comando para aumentar o volume. Ainda mais.
No dia seguinte Diogo saiu cedo de casa. Estaria a tempo e horas no aeroporto. Horas, minutos e segundos. Diogo era meticuloso no que a horários dizia respeito.
Já no aeroporto passou incontáveis vezes os olhos pelo relógio do painel das partidas. Só um nome o distraiu deste ritual – Florença. Este nome, associado ao de Clara, recordava-lhe um fim-de-semana escaldante na capital da Toscânia, berço do Renascimento.
A chamada para check-in despertou-o. Diogo seguiu calma e ritmadamente para o balcão.

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No dia seguinte Pedro saiu cedo de casa. Esperava estar a meio da manhã em Évora para reencontrar a sua filha. A viagem correu rápida no velocímetro mas lenta na mente de Pedro. Os olhos passaram vezes incontáveis pelo relógio do seu automóvel. Nunca mais era a hora de ver Sara.
Quando finalmente estacionou frente à casa dos seus ainda sogros prontamente a porta se abriu.
- Papá!!!! – Com um sorriso rasgado Sara correu em direcção ao pai. Nas costas uma mochilinha cor-de-rosa, com a forma da cara de uma gatinha. Nas mãos um peluche peculiar. O tigre Hobbes, o companheiro de aventuras de Calvin. Presente do tio Diogo, este peluche recordava a Pedro as suas tiras de banda desenhada preferidas.
- Girassol! – Pedro apressou-se a apanhá-la do chão. Levantou-a acima do seu olhar. O sol a espreitar por entre os cabelos soltos da filha. – Tantas saudades que o pai tinha de ti meu amor! – Deu-lhe um abraço que, a certa altura, lhe pareceu demasiado forte. Ao pé daquela pequena criança todas as preocupações ficavam minúsculas. A filha olhou sobre o ombro do pai para o lugar-do-morto, vazio. – A mamã? – Pedro fez um esforço descomunal para manter um sorriso na cara. – A mamã não pode ir girassol.
Dona Beatriz aproximou-se, carregando uma malinha nas mãos e tristeza nos olhos.
- Como vai Pedro? – Este respondeu-lhe com um encolher de ombros. – Vai-se andando… Olhe, nós vamos até Sevilha. Eles têm lá um parque de diversões. Vai ser um espectáculo, não é filhota? – Olhou de novo para a sua menina. – Siiiiiim!
O resto do dia foi passado em viagem. Pedro e Sara cantaram, jogaram e riram bastante. Os silêncios, curtos, só aconteciam a seguir às perguntas sobre a “mamã”.
Ao fim do dia chegaram a PortAventura. No quarto do hotel Pedro deitou a sua filha. Sara despertou por uns instantes. Enquanto o pai lhe aconchegava os lençóis, Sara fez o pedido de sempre:
- Papá canta a música da menina doce. Cantas?
O pedido desenhou um sorriso na cara de Pedro. - Claro meu amor. – Deitou-se ao lado dela e começou a cantar a música do seu filme preferido – Assassinos Natos - Sweet Jane.

15 comentários:

Nathalia disse...

Muito bem :o)
Não pensei que o Pedro fosse do tipo de gostar do "Assassinos Natos", mas eu tb não sou...e vc tb não é.

astuto disse...

Capítulo bem escrito e carregado de emoções. E o mais importante é isso: transmitir emoções.

A menina chama-se Sara. E Diogo sempre vai para Zurique. Vamos a ver como se desenvolve a história. Parabéns, Touro.

Cumprimentos.

Corduroy disse...

Ganda capitulo Touro. Gsotei do tratamento que deste a relação de Pedro com Sara... e o pormenor da Sweet Jane (apesar de gostar mais da versão do Lou Reed) é delicioso, pois parece mesmo uma musica de embalar. Parabéns.

Luis Prata disse...

Sensações à flor da pele.. Muito bom capítulo Touro!

As escolhas musicais também me agradaram muito.. 5*

Eduardo Ramos disse...

... este gajo fez-me ficar com a lágrima no canto do olho!
:o)

Anônimo disse...

tamos na onda.

ja temos o trama na ponta do iceberg.

m.o

Leonor Martins disse...

Bem, voltámos ao melhor de ... um conto de - estamos em escalada novamente!

Gostei das descrições, dos diálogos e dos silêncios angustiantes. Gostei da perspectiva cinematográfica das cenas do Diogo e das cenas do Pedro. Gostei de saber que o Diogo é um falso e manipulador...não gostei de não saber nada dos outros personagens deixados em capítulos passados.

Mas neste ponto...estou com a curiosidade muito mais elevada, pelo que agradeço...e suspiro :)

Touro - Como te foste lembrar da expressão girassol?

Anônimo disse...

Li o vosso conto todo, e de forma geral gostei, uns capitulos mais que outros mas isso é mais que normal.
Contudo neste capitulo, só tenho uma coisinha apontar PortAventura não fica em Sevilha mas sim em Barcelona.
Parabéns a todos! Continuem!

Marta

Touro Zentado disse...

Olá a todos!
Vocês estragam-me com mimos!
Obrigado pelas críticas/elogios!

Quanto ao erro apontado pela MArta. Tens toda a razão! Só agora é que me apercebi da borrada. Confundi o PortAventura com o Isla Mágica... Era este que devia ter referido! Obrigado pelo reparo Marta. =)

Touro Zentado disse...

Já me esquecia... Olá Leonor! Espero que as férias tenham sido boas!
O girassol porquê? Por um lado porque é uma flor que me agrada bastante. Por outro porque um girassol é uma flor linda, irradia luz e transmite felicidade. É assim que o Pedro vê a Sara! =)

Leonor Martins disse...

Touro:
As férias, quando o tempo ajudou, foram óptimas...vamos ver o que me reservam as próximas :)
Obrigado pela resposta - vou passar a ver os girassóis sobre uma outra perspectiva...muito mais feliz :D!

Ao Contador que se segue:
Tou longe, aqui pelos Algarves (aliás estou a sair agora para atravessar a fronteira)...mas aguarda-se com alguma ansiedade o próximo capítulo.

A todos os Contadores:
Bom fim de Semana...

Jaleco disse...

Isto tá lindo :)!! Muito cultural...e com uma referência a um dos meus filmes preferidos também: Assassinos Natos!! 5*'s :)

Cristina disse...

O Pedro tem uma filha? Está certo... Muito bom capítulo e cheio de descrições muito bem feitas. O erro no final sobre o PortAventura acaba por se desvanecer perante a qualidade do autor.

Boa onda!

susemad disse...

Mais uma personagem que entra. Gostei da afinidade de Pedro com a filha. Girassol à filha soou-me bem. :) Este capítulo demonstra muita sensibilidade e claro que já nem é preciso referir que está muito bem escrito nas suas descrições.
O irmão foi de viagem... hummm... vamos ver aonde isto vai dar.

susemad disse...

Ah! Também gostei do último pormenor musical. :)