Novamente um impulso de escrever o seu nome. Desta vez foi no espelho embaciado da casa de banho. Antes tinha sido na PJ. Aquilo sim tinha sido uma burrice. Escrever CLARA no local onde tinha sido interrogado sobre a sua morte. Mas escrever o seu nome era como uma forma de tê-la ali perto dele novamente.
Via seus ferimentos por entre as letras. Um grande corte sob o olho direito e uma negra do lado esquerdo da boca. Quem diria que aquele estupor era tão forte? Mas não reagiu. Por quê? Por que deixou que Pedro lhe batesse? Por quê?
Talvez tivesse sido aquela foto da Clara com a miúda e com Diogo. Sabia que ela tinha uma filha, mas não sabia que era tão próxima do cunhado. Ela nunca falava sobre a sua vida pessoal. Na verdade, não sabia muito sobre ela, mas o que sabia bastava-lhe. Ela era doce. Um anjo.
Pensava nas suas fotos. Antes faziam-lhe companhia, mas agora não as podia ter por perto. Fizera bem em tirá-las das paredes. O seu perfume e o sabor da sua boca seriam as únicas lembranças daquele amor quase platónico.
Por agora era melhor colocar um penso rápido naquele corte. Já estava atrasado.
A sua mão alisava a superfície da chaise longue quase como um acto involuntário. O veludo suave que lhe fazia lembrar a pele de Clara. Ou como ele imaginava que fosse. O beijo foi tão rápido!
Tic, tac, tic, tac…detestava aquele relógio. Tic, tac, tic, tac. Ela já estava dez minutos atrasada. Demoraria muito mais? Não gostava de admitir para si mesmo que andava numa psicóloga, mas aquilo até sabia bem. Era sempre alguém com quem compartilhar, uma amiga.
Não tinha muitos momentos assim. Ultimamente seu único amigo era ele mesmo. Os antigos amigos não percebiam o seu amor. Não percebiam as fotos nas paredes ou o perfume de maçã. Diziam que era uma obsessão.
“Olá César. Como estás? Fizeste o teu TPC?”.
Era uma senhora elegante a Drª Sophia Dantas. Lembrava-lhe Sophia Loren não só pelo sotaque ou pela elegância, mas principalmente pela beleza. Seu sotaque não negava que vinha de Itália, mas não atrapalhava a sua atitude decidida e profissional. Ela sabia o que fazia.
“Fiz. Custou-me um bocado, mas fiz. Assim a polícia já não terá tantas suspeitas, não é? Mas não consegui deitar fora o perfume. Talvez ainda consiga, mas não agora. E qual é o mal em tê-lo comigo?”. Tinha esperanças de que ela concordasse que não havia mesmo mal nenhum.
“Tu sabes qual é o mal. Já falamos sobre isso vezes e vezes sem conta. Tu amas demais, e amar demais também é uma doença. É por isso que estás aqui. Mas se não fazes aquilo que eu te peço, se não cooperas, eu não posso ajudar-te!”. Ele sabia que era um paciente complicado até para uma pessoa com tanta experiência. Sabia que ela precisava ter muita calma e paciência. Mas porque as pessoas não conseguem aceitar um amor como o dele?
“Não quero ver-te novamente até que te livres de todas as coisas que podem lembrar-te dela. Ela está morta, César! E tu estás vivo! E ou paras com essa história de que a polícia vai perseguir-te ou mando-te para um psiquiatra para que ele te trate como um esquizofrénico!”. Levantou-se e foi até a porta, mas antes de sair perguntou “Queres dizer mais alguma coisa?”
César já não sabia o que dizer. Aquela que achava ser a sua “quase” amiga também o ia deixar, assim como os outros amigos tinham feito. Será que ele estava mesmo obcecado com aquela história? Será que o seu amor era anormal?
Decidiu contar-lhe sobre a sua visita à casa de Clara. “Estive na casa dela. Sei que era suposto não ir até lá, principalmente sendo uma cena de crime. Mas precisava de tentar perceber o que se passou. Precisava de sentir a sua presença. Precisava de ver o local onde ela morreu.”
Ela fez um ar desconsolado. Fez aquela cara de quem estava a pensar que ele era um estúpido, mas respirou fundo, manteve a calma e sentou-se novamente. “E então?”
Ele contou-lhe sobre como foi estar na casa da mulher que amava, como foi sentir o seu perfume e ver as suas fotos. “E então recebi uma sms que me dizia que o que eu estava a procurar estava debaixo da mesa do escritório! Mas não sei quem enviou nem estava a procura de nada! Já estou farto dessas mensagens misteriosas!”.
Ela bateu com a mão na mesa e levantou-se. “Acho que tenho mesmo que mandar-te para o psiquiatra! Tu andas a querer enganar-te ou o quê? Não tens ninguém a seguir-te, ninguém a mandar-te mensagens! É tudo imaginação tua! Não vês?”.
Desta vez foi ele que se levantou. Não estava a ficar louco nem estava a imaginar coisas. Sabia que a sms era real. Ou pelo menos achava que sabia! Pegou no telemóvel para mostrar-lhe as mensagens. Mensagens, Caixa de entrada, Mensagens Recebidas. Não estavam ali! Teria apagado?
Tinha que descobrir quem matara Clara. Mas como? “Volto quando descobrir o assassino”.
“Onde vais? Ainda temos muito que conversar. Quero dar-te o cartão de um amigo meu. Ele vai passar-te uns medicamentos que podem ajudar.” Mas ele não queria saber de psiquiatras. Bateu a porta.
Pensava como ia fazer para encontrar Diogo. Tinha deixado a agenda dentro da mala. Devia ter tirado pelo menos o cartão! Estúpido. Ainda procurou na sua lista de contactos do telemóvel, mas não conseguiu encontrá-lo.
O telemóvel começa a tocar, mas não conhece aquele número.
“César?”. Conhecia aquela voz, mas não lembrava de onde.
“Sim? Quem fala?”
“Vimo-nos no apartamento da Clara. Eu sou a amiga do Pedro, Marta.” Agora lembrava-se.
“Olá.” Não sabia exactamente o que dizer. Não era muito bom no que se pode chamar de relacionamento interpessoal. Nunca soube como puxar conversa. “Está melhor?”
“Estou sim, obrigada. Desculpe também por ter telefonado, mas precisava mesmo falar consigo.”
“Como conseguiu o meu número?” Seria ela mais uma investigadora? Teria ele cometido algum erro? Estariam todos à sua procura?
“Reconheci a sua voz e lembrei-me que fizeram-lhe umas perguntas sobre a Clara. Pedi à pessoa que está encarregue das investigações do assassinato que me desse o seu número. Ando a tentar ajudá-los, mas não sou polícia. Não se preocupe!” Se não era polícia, o que queria com ele?
Ela continuou. “Sei que você era colega de trabalho da Clara, mulher do Pedro. Queria falar um bocado sobre isso. Posso?”
“Ok” Essa poderia ser a sua oportunidade de descobrir mais um bocado sobre as investigações. Poderia ajudá-lo a dar mais alguns passos e descobrir quem tinha tirado a vida daquela mulher a quem ele tinha amado de forma tão plena. Poderia ajudá-lo na sua vingança.
“A Clara comentava consigo algo sobre a sua vida pessoal?”
“Não. Falávamos mais sobre o trabalho. Quer dizer, sabia que ela tinha uma filha e que era casada, mas não mais do que isso.”
“Engraçado. Li no depoimento do cunhado dela uma referência sobre o facto de vocês os dois terem ficado mais próximos nos últimos tempos.” Por que Diogo teria dito aquilo? Estaria a tentar incriminá-lo? Ou teria Clara comentado com ele sobre o amor dos dois? Que estupidez pensar que ela também o amava! Pensou no beijo.
“Não sei o que faria com que o Diogo dissesse isso. Não era verdade.”
“Mas você amava-a, certo?” Como ela sabia? Ele não tinha dito nada sobre isso. Teriam conversado com a Drª Sophia? Mas e o raio do profissionalismo? Onde estava? "Lembro-me de uma música que lhe dedicou há uns tempos: "Shoot Me Down". Pareceu-me romântico, atencioso."
“Er…Sim. Mas isso não vem ao caso! É pessoal!”
“Hum…ok. Eu não conheço o Dr. Diogo Madureira, mas sei que ele é um psicólogo. Não sabe se a Clara andava a fazer terapia?”
“Já disse que não falava sobre a sua vida pessoal.”
Repetiu para Marta tudo aquilo que já tinha dito à polícia. Mas ela diria aquilo que ele queria saber? “E vocês já têm alguma pista sobre o assassino?”
Ela pareceu hesitar antes de responder. Pareceu ponderar. “Na verdade, ainda não sabemos quem ele é. Ou ela." Ficou em silêncio por alguns segundos. No que estaria a pensar? "Parece que o trabalho foi bem feito.”
“Parece estar a esconder-me algo.” Atirou barro à parede.
“Você parece um bom homem. Parece-me que amava mesmo aquela mulher. Acho que pode ajudar-me a descobrir mais qualquer coisa.” Ela começava a abrir-se com ele. “Eles dizem que eu tenho uma coisa chamada PES. Parece que eu sei de coisas que outras pessoas não sabem. Sinto o que outras pessoas não sentem. Ontem vi o rosto de um homem na banheira da Clara. Não sei se é importante, mas senti uma coisa estranha.”. Ele deixava-a falar. “Senti medo.”
“E conhece o tal homem?”
“Er…Não sei. Achava que sim, porque conheço o seu rosto. Mas não parecia ele. A energia não era a dele.”
“Tenho de ajudá-la a descobrir o cabrão que matou a minha Clara.”