quarta-feira, 30 de maio de 2007

Capítulo XX


Olhando para o isqueiro na sua mão, César conta os segundos passarem a cada faísca. Estava muito nervoso por estar dentro daquela sala há tantas horas e sem cigarros. Tenho que sair daqui.

Decide finalmente levantar-se da cadeira para sondar os quatro cantos da sala em busca de algo para escrever. Em cima da mesa está apenas um jarro de água e duas chávenas. Olha novamente para o isqueiro que tem na mão e pressiona no seu botão até se soltar mais uma faísca e se fazer luz. Aproxima-se da mesa e agarra numa das chávenas. Usa agora a chama do isqueiro para pintar totalmente de preto o fundo da chávena, e seguida passar todos os seus dedos pelo fundo chamuscado. Aproximando-se de uma das paredes brancas da sala com as pontas dos dedos totalmente pretas, desenha uma sequência de letras maiúsculas. Pronto... Já está.

César já tinha pensado em abandonar a pequena sala há muito tempo, mas apenas naquele momento ganhou coragem para arriscar. Ao passar a porta dá de caras com um agente que ia no mesmo instante a entrar.
"Senhor César Campos certo?"
"Sim. Que susto me pregou senhor agente" diz César tentando disfarçar.
"Não tenha medo que eu não mordo. Olhe, pode ir embora para casa. O inspector Mesquita ligou-me e pediu-me que o mandasse embora, infelizmente aconteceu um imprevisto e ele não consegue voltar a tempo. Entrará em contacto consigo em breve."
"OK, ahh.. OK, ficarei à espera." responde a gaguejar.
"A recepção está informada, por isso basta apenas identificar-se à saída."
"Muitíssimo obrigado senhor agente, tenha uma boa noite." O agente não responde e permanece imóvel.

César vira-lhe as costas e percorre o corredor da Judiciária em direcção à saída sem olhar para trás até cruzar uma esquina. Ao dobrá-la é surpreendido por um olhar perturbador que o faz parar os passos. Mesmo à sua frente encontra-se uma senhora de idade parada no meio do corredor a olhar para ele. A velhota devia ter cerca de 60 anos mas estranhamente estava pintada como uma rapariga de 18 e totalmente despenteada. Uma bata azul clara fazia-a parecer uma empregada de limpeza, mas o seu olhar profundo e hipnotizante fazia-lhe lembrar uma bruxa sem vassoura. César sentia as pernas congeladas, não se conseguía mover. Incomodado decide quebrar o silêncio.

"Desculpe minha senhora, eu preciso de fumar. Existe aqui algum lugar perto onde possa comprar tabaco? "
“Sim senhor,” diz ela sem tirar os olhos de cima dele nem para pestanejar. “existe um café mesmo do outro lado da rua.”
“Obrigado... Então tenha uma boa noite senhora.” responde ele virando costas depois de ser atingido por um arrepio na espinha.
“De nada. Tenha também uma boa noite senhor César.”
César vira-se para trás, “Senhor César? Desculpe, eu conheço-a?”.
"Não me parece. Mas eu conheço-o a si. O senhor é o César da rádio, reconheci-o logo pela voz. Adoro ouvi-lo de manhã logo depois de acordar. É ainda mais bonito do que o imaginava."
“Bonito eu?.. Ora essa…” diz César não conseguindo disfarçar um pequeno sorriso. A velhota aproxima-se agora um pouco mais dele.
“Diga-me César, porque é que está triste?”
César hesita. A voz rouca da velhota é estranha e penetrante. “Triste. Eu não estou triste…”
“Não se preocupe César. Não precisa de estar triste, eu sei que tudo se vai resolver. E o César também sabe. Tudo sempre se resolve.” diz acenando a cabeça. “Sabe, o destino reserva sempre as melhores coisas ás melhores pessoas, e o César é uma dessas pessoas. Consigo ver isso nos seus lindos olhos.”
“Desculpe mas não sei se estou a perceber...”
“Já o meu avô costumava dizer. Nesta busca incessante pelo mundo, às vezes deixamos escapar aquilo que se encontra mesmo debaixo dos nossos olhos. Lembre-se disto César, lembre-se disto. Tenha uma boa noite.” diz ela abandonando o local e desaparecendo no escuro no fundo do corredor.

César apressa-se a sair do edifício meio transtornado com a conversa da velhota e a pensar no disparate que fez na parede branca da sala de interrogatório. Recorda as palavras da velhota que não lhe saem da cabeça. Nesta busca incessante pelo mundo, às vezes deixamos escapar aquilo que se encontra mesmo debaixo dos nossos olhos? Estranho... isto foi exactamente o que eu escrevi no jornal na minha última crónica semanal...
Era noite quando pisou o chão da rua já fora da Judiciária. Entra no banco de trás de um táxi que se encontrava parado mesmo à porta e diz a morada de sua casa ao taxista.
"Despache-se por favor!" exclamou.

Ao chegar a casa, César corre para o seu quarto fechando a porta atrás de si. Abre o guarda-fatos gigantesco de madeira de pinho onde ao fundo se encontra a mala de Clara que tinha ficado esquecida no último dia em que se viram. Ao olhar a mala preta, César recorda algumas palavras saídas da boca de Clara no dia da sua morte. Desculpa. Tu não compreendes… fui uma parva... precisamos de falar…
“Mas o que é que tu me querias dizer Clara?..” diz como que falando para os seus botões.
Agarra na mala e aproxima-se da cama onde a poisa e abre. Não demorou mais que cinco segundos até todo o seu conteúdo estar despejado em cima do edredão.

Incrível como depois de tanto tempo, a mala ainda libertava um suave odor a maçã. "Clara..." Espalhado pela cama está agora um rímel, um pacote de lenços de papel brancos, uma caixa de óculos, um porta-chaves supostamente com as chaves do apartamento dela, uma embalagem de pílulas, um bloco de notas Moleskine preto e duas caixas de Xanax.
“Porra.. duas caixas de Xanax?”

César agarra no porta-chaves e no Moleskine. Um pequeno cartão branco como que marcando uma página mostrava-se saliente do bloco saltando à vista. César retira o pequeno cartão de entre as páginas. Era um business card onde se podia ler: Diogo Madureira – Psicólogo Clínico.
“Olá Diogo.” diz ele. “Aposto que este bloco tem mais qualquer coisa.” e coloca-o no bolso do casaco levando-o consigo. O porta-chaves tem o mesmo destino que o Moleskine, o bolso do casaco, enquanto os restantes pertences de Clara são atirados novamente para dentro da mala.

César dirige-se à parede estampada com fotos de Clara e pára em frente dela por instantes. Respira fundo e começa a arrancá-las da parede até que não sobrasse nem uma. Perdoa-me meu amor. César não queria deixar elementos que o tornassem suspeito. Coloca agora todas as fotografias dentro da mala de Clara. Tenho que me livrar disto. Pronto está tudo.

Antes de abandonar o seu apartamento, César observa o reflexo de si próprio no seu enorme espelho à entrada. Eu vou-me vingar. Vou-te apanhar cabrão.
A sua expressão facial vincada de raiva assemelha-se agora a um animal raivoso, pronto a atacar. Os instintos estavam agora a apoderar-se dele. Aproxima-se do espelho e foca-se no seu olhar gritando para o espelho "Tu sabes quem eu sou? É? Sabes cabrão? Não sabes não... Tu não me conheces... Vou dar cabo de ti!" Um pontapé vigoroso acerta mesmo em cheio no espelho reduzindo-o a mil pedaços. No meio de tanta raiva, César usa todas as suas forças para gritar apenas uma coisa.“Odeio-te Pedro!!!” e sai porta fora levando a mala preta consigo.

31 comentários:

Nathalia disse...

Muito bom, Pratas! Ainda melhor do que o rascunho.
A foto foi feita de propósito?

Luis Prata disse...

Obrigado nathalia :)

Sim, fui eu que fotografei o cenário.

Eduardo Ramos disse...

Fotografaste?
Nem pergunto de onde tiraste as 2 caixas de Xanax!

Acabaste de dar outro "ar" aos contos. Tenho a impressão que daqui par diante, vamos ter outra maneira de contar a estória. Usando a imagem!
Eu pelo menos vou!
Grande ideia!
Isto está mesmo bom! Até dá formigas.

Corduroy disse...

Hehehe grande Pratas. Capitulo bem ao meu gosto... e o pormenor da foto +e delicioso.
Parabéns.

Luis Prata disse...

Na realidade, não são verdadeiras caixas de Xanax na fotografia. Mas mais ninguém sabe, apenas tu e eu, não digas a ninguém.

Doh!

blimunda sete luas disse...

Muito bem escrito e interessante, parabéns. Muitas pontas soltas "reapanhadas".

Touro Zentado disse...

Grande Pratas!
O capítulo está muito bom!
Gostei da forma como o apresentaste e ainda mais do conteúdo.
Agora... a ideia da foto... É soberba!
Parabéns!!!! E obrigado! Heheheh!

Leonor Martins disse...

Capitulo tranquilo, e como já se afirmou a estabelecer "pontes" com informações fornecidas anteriormente...com introdução de uma personagem que poderá ter ou não importância no desenrolar da história...bem como podera haver alguma importancia nas maiusculas escritas na parede...

Pessoalmente acho a mala pouco recheada (para mala de mulher), a estratégia da chavena demasiado funcional e de uma rapidez atroz e a questão levantada com o porta chaves com os olhos de protecção azuis já respondida num capítulo anterior.

E agora o que fazem ao Diogo??

Luis Prata disse...

Olá Leonor,

Obrigado pelos teu comentário.

Podes explicar melhor o que queres dizer com a questão do porta-chaves ter sido respondida num capítulo anterior?

Mocas disse...

Mais uma vez muito bom!
Gostei muito da música, gostei dos pormenores "reapanhados", gostei da descrição do estado de espírito do Sérgio e achei simplesmente soberba a ideia da foto!
Parabéns, deste toda uma nova dimensão ao conto com a introdução do elemento visual.
Beijocas,

Jaleco disse...

Gosto do novos traços q marcam a personalidade do César...intensifica-se a 'trama'!! :p

Miguel Ferreira disse...

Os meus sinceros Parabéns... Gostei imenso! Genial a ideia da foto mas muito cuidado com as imagens! Como se costuma dizer uma imagem vale mais que 1000 palavras...
O que será que o Cesar escreveu na parede??? Talvez nada de muito importante já que está na judiciaria. Ou não...
Mal posso esperar pelo proximo capitulo...

Parabens pela criatividade e pelo excelente trabalho.

Miguel Ferreira disse...

Se me permitem a crueldade...
Na minha opinião a foto entrava na perfeição a seguir a frase: "Não demorou mais que cinco segundos até todo o seu conteúdo estar despejado em cima do edredão." - FOTO - e depois o resto do texto.
Obrigava o leitor a uma interpretação totalmente virgem da foto e só depois lia a descrição... Isto apenas porque andamos a tanto tempo curiosos com a mala assim tinha-mos um pequeno exercicio mental e só depois as conclusões.

Fica a sugestão... :)

Mais 1 vez os meus parabens pelo capitulo... Está muito bom!

Luis Prata disse...

Obrigado pelos vossos comentários!

Miguel essa ideia é boa, e não me custa alterar a posição da foto.

Quanto ao que ele escreveu, só ele sabe :) talvez tenha escrito SLB hehe

Cristina disse...

Aí está um novo capítulo bem estruturado, interessante e que nos deixa em pulgas para saber a continuação da história. Está muito fixe a forma como deste ênfase ao Sérgio, ao seu amor pela Clara e à procura do assassino.

Deixas duas dúvidas no ar: o que terá ele escrito na PJ e o porquê do cartão do Diogo... Quero saber as respostas!

Parabéns. Boa sorte ao próximo!

Miguel Ferreira disse...

Perfect... :)

Touro Zentado disse...

Aqui fica o comentário ao contrário - uma observação de um contador a dois leitores - É César o nosso personagem... Não é Sérgio...
Hehehehehe!

Leonor Martins disse...

Pratas - Claro que posso!

Neste Capítulo consta"...um porta-chaves supostamente com as chaves do apartamento dela..."

No Capítulo VIII, também escrito por ti, consta "“Merda. Esqueci-me da mala.” De imediato abre o porta-luvas de onde retira um porta-chaves azul. “Ufff” suspirou. Cuidadosa, mantinha sempre umas segundas chaves do seu apartamento para alguma emergência. Antes de sair, fecha o porta-luvas e olha o seu reflexo no retrovisor."

Em suma, as chaves que se encontram na mala são as "primeiras" chaves do apartamento da Clara - podendo o César levantar essa questão...os leitores já tinham a resposta!

No 1º comentário por lapso não falei na foto...achei uma boa ideia...bem como a sugestão do Miguel...

Até breve...

Luis Prata disse...

Percebido!

Sim, não era novidade nenhuma :) desde o capítulo que escrevi que queria que o César encontrasse as 1ªs chaves dela :) finalmente consegui :)

Anônimo disse...

imagem....boa!! ja estava a ser mt secante so palavras...alguem com originalidade

Isabel!

Jaleco disse...

Ena...a Leonor é uma leitora do caneco!! Ainda bem :)

astuto disse...

Vim só dizer que estou vivo! Ainda tenho que ler os dois capítulos do Eduardo, o do Jaleco e este do Pratas. Tenho que ler e reler de fio a pavio, só não li antes por falta de tempo.

Peço desculpa :-(

Já vi que a Maria é a seguinte, se ela fizer o capítulo dela entretanto, no fim-de-semana conto com arranjar umas horas para pôr tudo a andar... Senão, vou ler os últimos capítulo, pôr os comentários em dia e fazer o rascunho.

Cumprimentos a todos e parabéns pela dedicação.

Luis Prata disse...

Welcome back astuto!

Eduardo Ramos disse...

Qual cabeco, Janelo?
Aquilo é um serviço completo com talheres e tudo... para 10 pessoas (hehe)

Unknown disse...

Muitos parabéns pelo capítulo... Espero que a ideia de utilizar a imagem abra um precedente no blog... Pode ser que surgam novas formas de ilustrar o vosso conto já fantasticamente bem estruturado!

Maria Strüder disse...

Muito bom Pratas agora fica o meu nervoso miudinho para o meu post que irei efectuar já esta tarde...

Leonor Martins disse...

Maria...já é bem de noite ;)

Anônimo disse...
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Vladimir disse...

muito bem apresentado, esperemos pela continuação....

susemad disse...

Estava ansiosa de voltar ao César!! E Pratas tu fizeste aqui um excelente trabalho!! Vamos lá ver aonde o César nos leva!! :)

Anônimo disse...

ja temos uma dupla personalidade no cesar optimo.
bom trabalho desculpem a ausencia.
m.o