quarta-feira, 30 de maio de 2007

Capítulo XX


Olhando para o isqueiro na sua mão, César conta os segundos passarem a cada faísca. Estava muito nervoso por estar dentro daquela sala há tantas horas e sem cigarros. Tenho que sair daqui.

Decide finalmente levantar-se da cadeira para sondar os quatro cantos da sala em busca de algo para escrever. Em cima da mesa está apenas um jarro de água e duas chávenas. Olha novamente para o isqueiro que tem na mão e pressiona no seu botão até se soltar mais uma faísca e se fazer luz. Aproxima-se da mesa e agarra numa das chávenas. Usa agora a chama do isqueiro para pintar totalmente de preto o fundo da chávena, e seguida passar todos os seus dedos pelo fundo chamuscado. Aproximando-se de uma das paredes brancas da sala com as pontas dos dedos totalmente pretas, desenha uma sequência de letras maiúsculas. Pronto... Já está.

César já tinha pensado em abandonar a pequena sala há muito tempo, mas apenas naquele momento ganhou coragem para arriscar. Ao passar a porta dá de caras com um agente que ia no mesmo instante a entrar.
"Senhor César Campos certo?"
"Sim. Que susto me pregou senhor agente" diz César tentando disfarçar.
"Não tenha medo que eu não mordo. Olhe, pode ir embora para casa. O inspector Mesquita ligou-me e pediu-me que o mandasse embora, infelizmente aconteceu um imprevisto e ele não consegue voltar a tempo. Entrará em contacto consigo em breve."
"OK, ahh.. OK, ficarei à espera." responde a gaguejar.
"A recepção está informada, por isso basta apenas identificar-se à saída."
"Muitíssimo obrigado senhor agente, tenha uma boa noite." O agente não responde e permanece imóvel.

César vira-lhe as costas e percorre o corredor da Judiciária em direcção à saída sem olhar para trás até cruzar uma esquina. Ao dobrá-la é surpreendido por um olhar perturbador que o faz parar os passos. Mesmo à sua frente encontra-se uma senhora de idade parada no meio do corredor a olhar para ele. A velhota devia ter cerca de 60 anos mas estranhamente estava pintada como uma rapariga de 18 e totalmente despenteada. Uma bata azul clara fazia-a parecer uma empregada de limpeza, mas o seu olhar profundo e hipnotizante fazia-lhe lembrar uma bruxa sem vassoura. César sentia as pernas congeladas, não se conseguía mover. Incomodado decide quebrar o silêncio.

"Desculpe minha senhora, eu preciso de fumar. Existe aqui algum lugar perto onde possa comprar tabaco? "
“Sim senhor,” diz ela sem tirar os olhos de cima dele nem para pestanejar. “existe um café mesmo do outro lado da rua.”
“Obrigado... Então tenha uma boa noite senhora.” responde ele virando costas depois de ser atingido por um arrepio na espinha.
“De nada. Tenha também uma boa noite senhor César.”
César vira-se para trás, “Senhor César? Desculpe, eu conheço-a?”.
"Não me parece. Mas eu conheço-o a si. O senhor é o César da rádio, reconheci-o logo pela voz. Adoro ouvi-lo de manhã logo depois de acordar. É ainda mais bonito do que o imaginava."
“Bonito eu?.. Ora essa…” diz César não conseguindo disfarçar um pequeno sorriso. A velhota aproxima-se agora um pouco mais dele.
“Diga-me César, porque é que está triste?”
César hesita. A voz rouca da velhota é estranha e penetrante. “Triste. Eu não estou triste…”
“Não se preocupe César. Não precisa de estar triste, eu sei que tudo se vai resolver. E o César também sabe. Tudo sempre se resolve.” diz acenando a cabeça. “Sabe, o destino reserva sempre as melhores coisas ás melhores pessoas, e o César é uma dessas pessoas. Consigo ver isso nos seus lindos olhos.”
“Desculpe mas não sei se estou a perceber...”
“Já o meu avô costumava dizer. Nesta busca incessante pelo mundo, às vezes deixamos escapar aquilo que se encontra mesmo debaixo dos nossos olhos. Lembre-se disto César, lembre-se disto. Tenha uma boa noite.” diz ela abandonando o local e desaparecendo no escuro no fundo do corredor.

César apressa-se a sair do edifício meio transtornado com a conversa da velhota e a pensar no disparate que fez na parede branca da sala de interrogatório. Recorda as palavras da velhota que não lhe saem da cabeça. Nesta busca incessante pelo mundo, às vezes deixamos escapar aquilo que se encontra mesmo debaixo dos nossos olhos? Estranho... isto foi exactamente o que eu escrevi no jornal na minha última crónica semanal...
Era noite quando pisou o chão da rua já fora da Judiciária. Entra no banco de trás de um táxi que se encontrava parado mesmo à porta e diz a morada de sua casa ao taxista.
"Despache-se por favor!" exclamou.

Ao chegar a casa, César corre para o seu quarto fechando a porta atrás de si. Abre o guarda-fatos gigantesco de madeira de pinho onde ao fundo se encontra a mala de Clara que tinha ficado esquecida no último dia em que se viram. Ao olhar a mala preta, César recorda algumas palavras saídas da boca de Clara no dia da sua morte. Desculpa. Tu não compreendes… fui uma parva... precisamos de falar…
“Mas o que é que tu me querias dizer Clara?..” diz como que falando para os seus botões.
Agarra na mala e aproxima-se da cama onde a poisa e abre. Não demorou mais que cinco segundos até todo o seu conteúdo estar despejado em cima do edredão.

Incrível como depois de tanto tempo, a mala ainda libertava um suave odor a maçã. "Clara..." Espalhado pela cama está agora um rímel, um pacote de lenços de papel brancos, uma caixa de óculos, um porta-chaves supostamente com as chaves do apartamento dela, uma embalagem de pílulas, um bloco de notas Moleskine preto e duas caixas de Xanax.
“Porra.. duas caixas de Xanax?”

César agarra no porta-chaves e no Moleskine. Um pequeno cartão branco como que marcando uma página mostrava-se saliente do bloco saltando à vista. César retira o pequeno cartão de entre as páginas. Era um business card onde se podia ler: Diogo Madureira – Psicólogo Clínico.
“Olá Diogo.” diz ele. “Aposto que este bloco tem mais qualquer coisa.” e coloca-o no bolso do casaco levando-o consigo. O porta-chaves tem o mesmo destino que o Moleskine, o bolso do casaco, enquanto os restantes pertences de Clara são atirados novamente para dentro da mala.

César dirige-se à parede estampada com fotos de Clara e pára em frente dela por instantes. Respira fundo e começa a arrancá-las da parede até que não sobrasse nem uma. Perdoa-me meu amor. César não queria deixar elementos que o tornassem suspeito. Coloca agora todas as fotografias dentro da mala de Clara. Tenho que me livrar disto. Pronto está tudo.

Antes de abandonar o seu apartamento, César observa o reflexo de si próprio no seu enorme espelho à entrada. Eu vou-me vingar. Vou-te apanhar cabrão.
A sua expressão facial vincada de raiva assemelha-se agora a um animal raivoso, pronto a atacar. Os instintos estavam agora a apoderar-se dele. Aproxima-se do espelho e foca-se no seu olhar gritando para o espelho "Tu sabes quem eu sou? É? Sabes cabrão? Não sabes não... Tu não me conheces... Vou dar cabo de ti!" Um pontapé vigoroso acerta mesmo em cheio no espelho reduzindo-o a mil pedaços. No meio de tanta raiva, César usa todas as suas forças para gritar apenas uma coisa.“Odeio-te Pedro!!!” e sai porta fora levando a mala preta consigo.

terça-feira, 22 de maio de 2007

Capítulo XIX

Depois de duas horas de conversa, um almoço e um bloco cheio de notas, Marta senta-se no chão relendo todos os apontamentos que tinha tirado da conversa com Francisco Mesquita. Ele conhecia muito bem o assunto e deu-lhe indicações acerca de coisa que nunca lhe passariam pela cabeça.
Foram duas horas muito cansativas. Estar sentada no chão era uma benesse. Quanto mais lia mais confusa se sentia:
“ Mas porque é que ele não veio comigo? Isto é muito confuso! Que faço?”
Marta desesperava. Lembrou-se então das palavras de Francisco:
“ Não posso estar com a Marta. Pois vou-a influenciar negativamente. De início tem que estar sozinha sem elementos críticos ou olhares intimidores. Relaxe e concentre-se.”

Inspirou fundo. Deixou o ar sair lentamente. Procurava estar o mais confortável possível. Fechou os olhos e tentou ouvir tudo o que se passava à sua volta. Era barulho demais. Levantou-se e foi fechar as janelas. Baixou um pouco as persianas. O ambiente ficou mais “morno”. Teve a tentação de ligar a música:
“Não! Não posso ter elementos de dispersão!” – pensou. Voltou a sentar-se no chão de pernas cruzadas. Voltou a inspirar fundo. Fechou novamente os olhos tentando “esvaziar” a cabeça de pensamentos. Nada! Era impossível. Estava sempre a pensar em alguma coisa. Os acontecimentos dos últimos dias não a deixavam. Abriu então os olhos e olhou para um ponto na parede. Focou toda a sua atenção nesse ponto. Tentava vê-lo ao pormenor. Não passava de uma pequena imperfeição da tinta na parede, mas servia como ponto de foco. Tentava ver a sua forma que era pouco clara devido à distância. Procurava usar toda sua atenção num único ponto, extraindo todos os outros pensamentos parasitas da cabeça. Ao fim de 5 minutos ininterruptos, Marta começou a sentir-se leve. Calma. O ponto deixou de ser um ponto e parecia crescer. Marta ficou curiosa com tal efeito e perde a concentração. O ponto voltou ao tamanho que tinha.
“ Por esta eu não estava à espera!” – Disse Marta em voz alta.

Voltou a concertar-se no mesmo ponto e tentando reproduzir o mesmo efeito novamente.
Ao fim de 5 tentativas mal sucedidas, Marta observava um ponto de 5 milímetros que agora lhe parecia uma bola de golfe. Gotas de suor assomavam-se na testa devido ao esforço de concentração. Sentia a cabeça a latejar. Fechou os olhos e tentou visualizar o mesmo ponto.
Era como se estivesse de olhos abertos. Tentou então ouvir o que a rodeava. Ouvia os carros na rua, apesar das janelas fechadas. A vizinha a puxar o cordame do estendal da roupa. O barulho das molas que caíam no chão da rua. Tentou desviar a concentração desses barulhos e isolar o que ouvia ao seu redor.
5 segundos…
15 segundos… um barulho subia de volume… um som pulsante e ao mesmo tempo um “arrastar”…
Abriu os olhos de espanto! Ouviu uma coisa estranha, mas familiar. Sorriu. Tinha acabado de ouvir o seu coração e o sangue a correr.
Com a manga da camisola, limpou o suor da testa. Estava cansada. Mas não saciada.
Finalmente estava a perceber que alguma coisa podia ser feita acima do que se pode considerar “normal”.
Podia ser que estivesse a ser levada pela sugestão, mas isso não a preocupava agora.
Devia continuar a praticar o poder de concentração, mas indo contra os que Francisco lhe tinha dito, decidiu passar à fase seguinte.

Puxou um saco escuro que tinha colocado perto de si, junto ao sofá, abriu-o e tirou 3 objectos.
Um relógio de pulso, um copo e uma tesoura.
No seu intimo sabia o que fazer.
Releu as suas notas. Coçou a cabeça e com um ar decidido pegou no relógio com as duas mãos. Olhou para ele e inspirou fundo. Observava-o como se à espera que ele crescesse como tinha acontecido o ponto da parede. Depressa percebeu que não iria resultar. Ficou sem saber que fazer. Começou e contempla-lo. Cheirou-o. Passou as mãos pela bracelete sentido todos os recantos e imperfeições. Pensamentos começaram a surgir-lhe na cabeça:
“ Era um homem gordo, mas com pouco robustez física. Era perfeccionista. Cuidadoso. Tomava banho todos os dias. “

“Eram deduções.”, pensava Marta. Sempre teve jeito para tirar conclusões das coisas que observava, qual investigador policial das séries televisivas. Ou será que não? Já seria o aflorar daquilo que ela agora procurava entender?
De súbito, outros pensamentos surgem. “Assustado”, “Medo”, “Pânico”.
Marta parou. Como podia pensar assim? Nada naquele relógio de pulso lhe podia dar essas conclusões.
Abanou a cabeça. Tinha que parar com o cepticismo. Não era tempo para isso.
Voltou a olhar para o relógio. Tentou “falar” com ele através das mãos. Acariciou-o, voltou a cheirar. Sentir. Ouvir. 10 minutos… surgem novamente os mesmos pensamentos, “Seria porque já os tinha tido?” – não se deixou abalar. Continuou. Abriu mais os olhos e procurou algo no relógio. Qualquer coisa que a levasse a sentir o que se teria passado com seu dono. Outra vez o pensamento recorrente. “Medo” – sem saber porquê, coloca o relógio no pulso – um flash, outro e mais outro.
“ Caramba!” – Marta caiu para trás. Nem queira creditar. Ela viu!… Mas o que viu? Viu uma cara destorcida. Raiva. Uma faca vindo na sua direcção.
Abriu o bloco e escreveu. Sua mão tremia num misto de êxtase medo. Como uma criança que abre o presente tão esperado na noite de Natal. Parou! Voltou a cabeça para os objectos restantes como um felino à procura de uma nova presa.
Olhou para o copo. Pegou nele novamente com as duas mãos. Fez o mesmo ritual que tinha feito com objecto anterior.
Ao fim de 15 minutos, sentiu dores no estômago. Um flash - Viu um copo vazio. Outro flash - Outra vez uma cara destorcida, mas desta vez de dor. Levantou-se a correr em direcção à casa de banho. Vomitou o almoço. Lá se tinha ido as belas favas. E que boas que estavam.
Lavou-se e voltou para o chão. Pegou no bloco e voltou a escrever o que viu e sentiu. Não conseguia controlar o nervosismo. Seu coração pulava descompassadamente.
Rapidamente pega na tesoura…. E voltou a pousa-la. Precisava de relaxar tanta excitação.
Ao fim de 10 minutos de concentração e focagem num ponto da sala, volt a pegar na tesoura.
30 minutos e nada!
Desesperada… abre a tesoura. Roda-a. NADA!
Olha atentamente para o seu reflexo. Procura um pouco de sangue que fosse. Volta a cheirar. Encosta-a da face. “ Teria sido arma de um assassinato? ”.
Nada.
Ao fim de 45 minutos, Marta sente-se frustrada. Coloca a tesoura de lado. Francisco dissera-lhe se um objecto não “falasse” com ela para desistir pois a insistência e a frustração só ia trazer maus resultados.

Levantou-se. Queria passar à fase 3.
Já mais gente tinha habitado aquela casa. As paredes teriam assistido a tudo o que se teria ali passado. Começou a andar. As mãos à frente como se esperasse encontrarem uma parede invisível. Sala. Corredor. Cozinha. Quarto. Casa de banho. Tentado sempre concentrar-se em tudo que pudesse ter presenciado um acontecimento. Qualquer coisa marcante. Respirava o ar que a rodeava calmamente. Tentava fazer o mesmo que fez quando esteve em casa de Clara.
Fez um esforço para não se influenciar pelo pensamento da morte da locutora.
Continuou procurando em cada passo “ouvir” a casa. Começou a sentir flutuar embora seus pés continuassem no chão. Deixava-se ir como se uma brisa a empurrasse. Olhou para o chuveiro da casa de banho. Voltou a cabeça e fitou as torneiras do lavatório… tocou-lhes… foi esbofeteada por 3 flashes seguidos.
“Bolas. Que susto!... Caramba!... Será que foi isto que… “
Marta saiu da casa de banho e foi à sala. Abriu o saco de onde estavam os objectos e tirou um papel dobrado em quatro.
Desdobrou-o e leu o que estava escrito pela mão de Francisco:
“ Relógio – Homem que foi esfaqueado por um assaltante para lhe roubar a carteira.
Copo – Morto por envenenamento
Tesoura – é minha e tem um “V” de volta”
Marta riu-se, mas seu corpo tremia.
Ouviu alguém no patamar do seu apartamento. Foi a correr abrir a porta:
“ Dona Maria! Ainda bem que a vejo! Alguém que morou neste apartamento teve algum acidente na casa de banho? “
“ Porque pergunta menina? Feriu-se?”
“ Não! É porque pareceu-me a ouvir alguém dizer isso lá em baixo.”
“ O que estas pessoas se lembram quando não têm mais nada que falar.”
“ Mas aconteceu? ”
“ Sim, Menina! Como deve ter ouvido, uma antiga inquilina minha que viveu aí, coitada, ao sair da banheira, escorregou e bateu com a cabeça na torneira do lavatório. Esteve à morte. Agora vive com o filho.”
“ Obrigada dona Maria! Eu vou ver se tenho cuidado então, não vá acontecer-me o mesmo. “
“ Faça isso, menina. Faça isso. “
“ Com sua licença então. Obrigada “
Marta fecha a porta. Ficando de costas encostada a esta deixou-se escorregar até ao chão:
“ Se contar isto à minha mãe… ela mete-me num hospício!" - Marta riu-se - "Tenho que praticar mais! Que horas serão? BECAS? Onde estás?”

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Capítulo XVIII

"César?", pergunta a recepcionista.
"Sim é César", responde com um tom agastado e triste.
"Estão aqui em baixo uns senhores da judiciária para falar consigo"...

César desce as escadas completamente absorto nos seus pensamentos e angústias. Quem seria a pessoa que lhe deixara mensagens tão perturbantes...o que queria consigo? A verdade é que toda a história dos assassinatos em série era desconhecida para ele. No seu mundo de dúvidas, existia Clara e as músicas que ouvia (e que o faziam recorda-la e senti-la), logo nem lhe passava pela cabeça que alguém com intenções tão destrutivas, quisesse algo com ele.

- Boa noite?! - exclamou César, como quem não estivesse à espera de ver inspectores da judiciária.
- Boa noite...é o Sr. César Campos?!
- Sou sim. Em que vos posso ser útil?
- O Sr. era colega da Dª Clara Madureira aqui na estação, estou certo?
- Era sim - replicou César com um profundo desgosto na voz.
- Como o Sr. sabe, a Dª Clara foi encontrada morta no seu apartamento ontem à noite e como tal, gostaríamos de saber quando a viu pela última vez, do que falaram, se ela parecia estranha...qualquer coisa que nos possa ajudar na investigação.
- Bem...isto está tudo muito confuso, eu... - César é interrompido pelo inspector Francisco Mesquita, que num tom muito sério, diz:
- É melhor falarmos na nossa sede. Por favor acompanhe-nos.

Entrando no carro, a conversa que iam mantendo com ele, era em tom de surdina...perdido nos seus pensamentos sobre a sua amada, ecoava a música de Sarah McLachlan - 'Angels'.

"Spend all your time waiting
for that second chance
for a break that would make it okay..."

Segundas chances...algo muito raro de acontecer na vida de alguém. Como reagir, ou melhor, como agir, caso tivéssemos oportunidade de reviver algo que nos tinha marcado, ou então aquela situação que nos ficara atravessada na garganta e que poderia ser remediada à segunda! Mas essa, era uma sorte que ele já não teria com a sua amada, apenas a recordação daquele doce e longo beijo o acompanharia para sempre.

"If you could live your life again
Would you change a thing or leave all the same
If you had the chance again
Would you change a thing at all
When you look back at your past
Can you say that you are proud of what we've done
Are there times when you believe
That the right you thought was wrong"
(Iron Maiden - 'Judgement of Heaven')

Chegado à sede da judiciária César começou a ficar desconfortável...uma sala pequena, luzes ofuscantes e três indivíduos a requerem a sua máxima atenção. Desta vez, ele não tinha como escapar para o seu mundo de ilusões.

- Sr. César, pode então por favor, descrever-nos a natureza da sua relação com a Dª Clara?
- Ela...era a 'alma' do nosso programa - diz César num tom inebriante e de olhos arregalados - muito atenciosa para comigo, acolheu-me bem, falávamos com normalidade sobre quase tudo...
- Incluindo da vida privada dela? - interrompe Francisco Mesquita.
- Bem, nesses casos, só se ela desabafasse, mas eu estava mais interessado no nosso dia-a-dia na rádio! - nesta altura os inspectores começam a notar um tom de obsessão na voz de César - Sabe, ela gostava mais de passar o seu tempo lá, do que em casa.
- Sabe o que se passava no casamento dela?
- Não! Só via o marido raras vezes, quando ia buscá-la à estação. - César não gostou desta pergunta. O seu tom alterado, fez com que os inspectores explorassem esta via.
- O que achava do marido dela, o Sr. Pedro Madureira?
- Não sei o que lhe dizer, mal lhe dirigi a palavra...apenas bom dia, boa tarde. O irmão dele é que eu conheço melhor.
- Diogo Madureira? - replicou Francisco Mesquita com os olhos arregalados.
- Sim...desde os tempos da faculdade. Não era do meu curso, mas costumávamos jogar ténis uma, duas vezes por semana e continuámos muito tempo após termos saído da faculdade.
- Isso é deveras interessante...! E em todo este tempo de convívio com o Sr. Diogo, nunca esteve com o irmão gémeo?
- Não! Só o vi quando conheci a Clara...e que susto apanhei. Pensei que fosse o Diogo!
- Susto?... - os inspectores olham entre si e César apercebe-se.
- Sim, até porque da última vez que falei com ele, pareceu-me um homem apaixonado e não se fartava de falar de uma mulher.

Os inspectores reuniram-se a um canto, analisando as palavras de César e tendo em conta o facto do registo de telemóvel de Clara ter mais de 10 chamadas para o telemóvel de Diogo na sua última semana de vida! O seu tom era de grande preocupação e ao mesmo tempo excitação por estes novos pormenores trazerem alguma luz à investigação. Ao acabarem, viraram-se para César:

- Sr. César, nós temos que nos ausentar por instantes, mas quero que fique por aqui, pois ainda temos muito que conversar consigo.
- Certo...mas ainda vou a tempo de voltar à rádio hoje? - César não gostou do tom do inspector Mesquita e cerrou o seu olhar no dele.
- Não contaria muito com isso. Nós falamos mal voltarmos.

Mal os inspectores saem da sala, César pega discretamente no seu telemóvel. Com muita calma, relê as mensagens recebidas há pouco e nelas tenta perceber que ligação têm com a sua ida à judiciária. César não vê a hora de sair dali para fora. A porta da sala fica mal fechada, nenhum barulho à volta...é a sua oportunidade!

Entretanto, os inspectores dirigem-se a casa de Diogo Madureira. Ao chegarem, notam todas as janelas com os estores corridos e umas pegadas de lama por entre o jardim. Tocam à campainha

- Quem é? - replica uma voz ténue, após quase 1 minuto.
- Polícia Judiciária!
Ouve-se um ranger de molas e um andar apressado.
- Bom dia senhores agentes...em que vos posso ser útil?
- Bom dia! Importa-se que entremos?
- Não...estejam à vontade. É por causa da minha cunhada que aqui estão?
Aquela pergunta de Diogo como que catapultou uma reacção síncrona dos três inspectores. Um sentou-se no sofá, juntamente com Diogo e os outros dois continuaram de pé a observar e a moverem-se pela casa.
- Relaxe Sr. Diogo...estamos aqui apenas por rotina. Queremos perceber que tipo de relacionamento a Dª Clara tinha com as pessoas mais chegadas.
- Ah, claro! Nós por acaso éramos muito chegados...mesmo após o pedido de divórcio do meu irmão.
- Não me diga! - os inspectores cruzaram os olhares por breves instantes e aquele movimento pela casa deixava Diogo inquieto, as suas mão não paravam no mesmo sítio. De repente, ouve-se uma voz vinda do quarto.
- Vai viajar Sr. Diogo?
- Sim...apenas uns dias de férias - disse Diogo de uma forma não muito convincente.
- Engraçado... - replicou a mesma voz do quarto - Zurique não é propriamente um sítio muito apetecível para férias!



terça-feira, 15 de maio de 2007

Capítulo XVII

Verónica estava sentada na cadeira de Bernardo. Fazia rodopiar a cadeira com alguma velocidade dano impulso com os pés por onde calhava. Ora se apoiava na secretária, ora na parede, fazendo os seus caracóis ruivos baloiçar alegremente. Ao mesmo tempo seus dedos brincavam com o telemóvel. Fazia-o girar como se tratasse de uma carta de jogar. Por acaso no visor estava o símbolo do Ás de espadas.
Levanta-se nervosa. “ Mas que gaita!” – dizia. Olhava mais uma vez o telemóvel. Aproximou-se da janela. Espreitou lá para fora… para nada.
Quando Verónica olhava para o telemóvel como um gato à caça, este vibrou. “PORRA!” - O susto foi tão grande que o Nokia saltou das mãos. Ela ainda tentou apanha-lo no ar, mas por duas vezes ele escapou e foi direito ao chão.
Verónica num acto de desespero baixa-se, mas ao fazer tal avança com o pé, pontapeando o telefone para debaixo da secretária ao mesmo tempo que sente uma dor fortíssima na testa de tal modo que cai par trás:
“MERDA!” – sacode a cabeça tentando perceber o que tinha acontecido e vê que tinha se esquecido de fechar a gaveta de onde tirou o telemóvel da empresa. Este tocava debaixo da secretária a música de Lionel Richie.

“Hello! Is it me you're looking for?”

“Merda de música! - ESTOU!? Espera só um bocadinho. Deixa-me sair daqui debaixo da secretaria.- NÃO INTERESSA! – O que interessa é saber se fizeste o que te pagaram para fazer?” – Verónica senta-se na cadeira de Bernardo esfregando a cabeça, pois um alto começava a aparecer.
“SIM! E o Mário? Que fez? … Fugiu pelas traseiras?... Foi para onde? MARTA? Esta agora!” – Levanta-se vai ao mini frigorifico e tira uma cerveja. Coloca a garrafa na testa.
“AAAAH! Que bom!... HÃN!?... Tens alguma coisa a ver com isso? Não querem lá ver!? – Vá , vá! Vai mantendo o Mário debaixo de olho. Faz de tudo para ele não vir aqui. Hoje e amanhã! … Está bem! Pagamos o resto depois. Té logo! Vai dizendo coisas.” – desliga – Estúpido!”
Verónica vira-se para o computador. Abre o Skipe e marca um número preestabelecido. Poisa a garrafa e olha para ela como se agora o interior fosse mais apetecível que o frio do vidro.
“Estou? Bernardo… oops Desculpa! Sim sem nomes! Já está. Podemos fazer o resto. Vai demorar. Tenho medo.”
Neste momento, Verónica começa a sentir-se desconfortável. Sente um calor nas mãos que as faz transpirar. O telefone voip vai mudando nervoamente de mão.
“Olha! E eu? Quando vou ter contigo? … 3 dias… e onde? … E espero lá por ti? … Chegas quando?”
A boca parecia cortiça.
“Eu não acho nada saudável fazer isto aos Russos… pronto! Está bem! Desculpa! Eu não digo mais nada! … mas tenho tanto medo!... Eu sei!... SIM! ISSO! Milionária!.. SIM!...vá então! Um beijo.”
Desliga.
Verónica inspira fundo. Sorri, mas logo a seguir fica como se soubesse que podia ser o último sorriso.
Abana a cabeça como se tentasse sacudir o pensamento. Dirige-se ao mini-bar para tirar um descapsulador.
“PSSST!” – salta a carica.
“Podes abrir uma para mim?”
“AAAAAAAAAAAAAAAAAHH!!” – Verónica dá um grito atirando a garrafa pelo ar. Esta vai para directamente à mão de alguém que não estava ali ainda à pouco.
“P-P-P-Pedro?” – balbucia Verónica.
“SIM! Pedro! O caça gambozinos!”
“Desculpa?”
“Não desculpo! Que queres? Tenho este feitio!”
Verónica procurava desesperadamente um sítio para se encostar. Acaba por se sentar em cima da secretária. Pedro bebia de uma assentada meia Carlsberg. Mete a mão no bolso e tira um mini gravador digital.
“Sabes o que é isto?” – Verónica ia abrir a boca – “Não digas! Isto é um minigravador que comprei no LIDL que me ajuda muitas vezes quando tenho que falar com os clientes, para mais tarde preparar os meus casos. E sabes que mais? Hoje voltou a ajudar-me!”
Pedro senta-se na cadeira de Bernardo. Coloca-se na pose o mais feminina que sabia e liga o aparelho!”
“Estou? Bernardo… oops Desculpa! Sim sem nomes! Já está. Podemos fazer o resto. Vai demorar. Tenho medo.”
Pedro desliga o aparelho e olha para Verónica com ar de gozo. Esta estava branca.
“ MEDO! MUITO MEDO! Quer ir fazer xixi, antes que faça aqui?”
“ Eu… eu… eu…”
“Sim! Pelo que percebi! Tu e o senhor Bernardo!... Pelo menos! Conta lá então!”
“ Eu não tenho nada a dizer!”
“Não!? … Bom! Então não tenho nada a fazer aqui. Desculpa o incómodo! Vou-me embora!”
“ Sim é melhor!”
Indo directo à porta de saída - “ Só mais um coisa… qual é o número da policia local?... Deixa eu ligo para o 112. Eles depois dizem-me!”
Verónica, corre e segura-o por um braço.
“Espera!”
“Espero eeee?”
“Eeeee… não contes a ninguém!”
“Porque…”
“Porque… tenho medo!”
“Espera! Outra vez medo! Olha! Estou a perder a paciência!| Ou contas depressa o que se passa ou a policia vai ficar muito contente em conhecer o meu papagaio.”
“Eu... eu… eu… - derrotada – eu conto!”
“Marta está envolvida?”
“Não! Bernardo aproveitou a deixa dos assassínios para colocar fora de acção Marta o tempo suficiente para …!”
“OS QUÊ!? – Pedro sentiu o sangue a ferver – ISTO É DE LOUCOS! – tentando-se controlar - Isto ainda vai ser melhor. Espera aí! Tenho um telefonema para fazer!”
“Para quem?”
“Não tenhas… MEDO! – Estou? Podes vir aqui à empresa? Tenho uma surpresa.”

...

Marta entra no escritório de Bernardo. Estavam lá duas caras suas conhecidas. Verónica a sua colega que Marta sempre achou meio desaparafusada e Pedro com uma cara como se tivesse descoberto o assassino da esposa.
“ Que se passa?”
“ Aqui a senhora ruivinha e o nosso GRANDE amigo Bernardo, pelo que percebi, andam a tramar alguma tão pequena que até esta noite foi à caça de gambozinos a uma quinta onde vive um velho amigo das pescas de Bernardo e 3 malditos cães que me puseram acorrer como nunca corri na vida!”
“ HEM?” – as sobrancelhas de Marta levantaram ao mesmo tempo que os olhos se esbugalhavam.
“ Pois é! O senhor Doutor Bernardo não é quem nós pensamos. Não é senhora Verónica? Quer continuar ou posso tentar adivinhar!”
“Sim! – Verónica falava baixo. Marta nem conseguia dizer nada. – A ideia era tirar Marta e o Mário daqui. Surgiu a oportunidade com a história dos assassínios em série. Bernardo usava Pedro para levar Marta a ajudar a Judite nos casos, afastando-a por uns tempos. E Mário seria mais fácil. Basta sentir-se seguido. Vigiado e tão depressa não viria aqui. Parece que Marta tem qualquer coisa nos pés. Não percebi o que isso podia ajudar a polícia.”
“ PARA QUÊ? ESTOU-ME QUASE A PASSAR!” – Quase faltou a voz a Marta com o grito.
“Diz-me Marta. De onde é que achas que surgiu o dinheiro para começar esta empresa?” – diz Verónica.
“ Bem! Agora que falas nisso… nunca perguntei. A empresa não era minha. Sou uma empregada . Não sei…”
“Pois! Mas de certeza que não era de herança nem do trabalho de Bernardo, não é!?”
“… pois! Talvez…!”
“Então donde?” – Pergunta Pedro mexendo-se e contorcendo-se na cadeira de Bernardo como se estivesse cheio de formigas.
“Russo…”
"... mas a Associação!?" - Pergunta Marta.
"Banco Russo... Mafia Russa... percebes!?"
“FODA-SE! A gravação…” - Pedro enquanto procurava o trecho no aparelho olhou de soslaio para Marta, meio envergonhado pelo palavrão.
Ouviu-se então:
“…Eu não acho nada saudável fazer isto aos Russos… pronto! Está bem!...”

“AAAAAHHHH! “ - Disse Pedro triunfante.
“O que é isso?” – pergunta Marta.
“ Uma sorte do caraças, quando vinha pedir explicações acerca de ontem me terem mandado à caça de um tesouro que não existia, à procura de pistas acerca do assassino da Clara, numa quinta onde deveria ser uma sede de uma seita qualquer. Esquece!”
“ E apanhaste laranjas quando pensavas que eram limões! BOA! - Estou muito desiludida contigo Verónica. Com Bernardo então até estou de rastos!”
“ E acaba lá com isso. Qual é a ideia?”
“ Os Russos querem que as empresa com que trabalhamos sejam pressionadas a trabalhar para eles.”
“ Eeee…?” – Pergunta Pedro.
“ Porque se não fizéssemos isso tiravam-nos o apoio. Ficávamos com nada. Se fizéssemos, caso fosse descoberto, quem se lixava éramos nós!”
“ Quer dizer aquela história parva do ciganos, do vício, do dinheiro, tinha uma ponta de verdade?
“ Bernardo não se mete com ciganos. Gente baixa.”
“ Óh! Sim! Prefere meter-se com gente graúda. Máfia Russa. Bem graúda por sinal!” – Marta nem sabia o que fazer com os braços.
“Eeeeeeeeeeee…. Já estou a começar a ficar farto!”- salta Pedro.
“Bernardo pensava fugir com uma boa fatia do dinheiro da empresa e desaparecer!”
“ MAS ELE ESTÁ MALUCO? ELE NÃO SABE QUE É VIGIADO POR TODO O LADO? “ – Marta quase que esmurrou Verónica. Os braços voavam em frente à cara dela. Mais parecia que eram os braços e as mãos que falavam.
“ Não sei! “
“ Qual era a ideia? Tem que haver uma volta qualquer bem feita para a coisa sair direita!”
“ Era um troca e baldroca feita entre bancos. Tem haver com branqueamento de dinheiro e pagamentos de comissões chorudas. É muito dinheiro. Com muito zeros. Nós pagávamos os dividendos aos Russos e tínhamos tudo em dia. Afinal eram eles os financiadores. Mas quando lhes deu para aquela ideia vimos que podíamos ir para o xadrez ou ficar com uns sapatos de cimento.”
“ E tu? Onde tás tu nisto? – pergunta Marta, ainda meio combalida.
“ Bernardo à sua maneira gosta de mim. Não me ama. Acho que ele não ama ninguém a não ser ele mesmo, mas prometeu-me ir viver com ele no início. Depois ele dava-me uma parte de dinheiro e eu ia para onde que quisesse.”
“ E agora que fazemos? ” – pergunta Marta.
“ Que fazemos? NADA! Quem vai “fazer” é a Judite. Tenho uns conhecimentos em alguns bancos e tenho a impressão que esta empresa com a viabilidade que tem, depressa vai ter outro administrador e com outros fundos. Por mim o mais fácil é pagar aos Russos a divida que existe e eles ficarem bem caladinhos para não haver barulho. A Judite sabe bem o que fazer com isto. Não te preocupes com nada.”
“ E .. e.. e eu?” – Verónica tremia.
“ Eu tu, faz de conta que a coisa foi descoberta sem ti… PARA JÁ! Vamos a ver no que isto dá! Sinceramente já não me chegava os meus problemas e ainda mais esta. XIÇA!”
“ E o Mário? “ - pergunta Marta.
“ Esse é um pobre coitado. Se andasse por aqui quando a coisa fosse feita. Ainda estragava tudo. É muito bom na sua profissão e sabia de algumas coisas, mas não sabia do essencial. Mandei-o seguir por um conhecido meu, para o manter afastado daqui por uns dias!”
“ E achas mesmo que Bernardo ia dar-te aquilo que te prometeu?” – Pergunta Pedro
“ Sim claro que sim! Ele disse-me todos os passos a dar. Para onde vai e para onde ia e como se fazia!..”
“ ELE disse? .. Tu ficaste aqui! Ele foi para onde?... Marrocos? China? Pois… ! Que medicação tomas? – Pedro olhava para Verónica como se tratasse de uma criança que se tinha portado mal.
“ Espanha!... E só tomo a pílula… não sou drogada… pois…”
“ ESQUECE! … Marta. Temos que encontrar Mário. Pode não ser nada, mas é melhor ele andar por perto de nós, não vá o diabo tece-las!”
“Sim! Também acho!”
“ Mas diz-me lá! Nunca te apercebeste de nada em relação ao Bernardo?”
“ Não! Afinal ele estava a agir de boa fé. Só ultimamente é que me sentia meio desconfortável ao pé dele. Angustiada. Mas nunca dei a importância, com daria hoje em dia sabendo o que sei!”
“ Mas o que é que estão a falar!??” – pergunta Verónica.
Pedro e Marta ao mesmo tempo - “CALOU!!”

quinta-feira, 10 de maio de 2007

Capítulo XVI



... César queria morrer ali.

Ao receber aquela "monstruosa" noticia da morte de Clara, o mundo pareceu cair sobre ele, e naquele instante revelou não possuir força nem vontade para se manter vivo.
Não queria acreditar. O amor da sua vida, como ele gostava de pensar, tinha dado entrada no mundo dos mortos, e ele nunca teve a coragem necessária para lhe dizer cara-a-cara aquilo que realmente sentia por ela. César nunca se iria perdoar por tal.

Só queria estar só. Frágil, resolveu correr com um destino definido: o topo do edífico da rádio. A rádio onde conhecera e desenvolvera a sua paixão por Clara. A sua vida acabara de se desmoronar e ali à sua frente só o abismo.
César estava agora no parapeito do edificío, e de todos os lugares do mundo, aquele pareceu-lhe o sitio mais "acolhedor" para a sua grande dôr.
A respiração era ofegante. As lâgrimas pareciam pequenos rios que se alastravam pelo rosto. O bater do coração era imponente.
César fecha os olhos e ergue os braços como de asas se tratasse. Estaria ele com intenção de pôr término à sua própria vida? Estaria apenas a sentir a leve brisa que se fazia sentir daquele alto? Ou esperava que algum anjo o levasse para bem longe?

Com apenas 13 anos, César enfrentou a dura realidade de perder o pai num acidente de viação e por momentos estava a reviver esse trágico momento que mudara a sua vida para sempre.
Mas desta vez era diferente. Era a sua grande paixão. O seu amor impossível, como dizia muitas vezes. Agora sim era impossivél...
E naquele preciso momento e num acto de raiva enorme tentou o salto dali para fora. Mas algo o impediu...
O seu telemóvel vibrou uns milésimos de segundo antes de tentar o salto, o que o impediu de pôr fim à sua vida.
"Fui salvo por uma sms", disse ironicamente com um largo e choroso sorriso.

Resolveu então sentar-se, ganhar um pouco de fôlego e ler a sms que acabara de salvar a sua vida.
César decide então ler. A mensagem era de remetente anônimo:

"Sei quem tu és. Será que sabes quem eu sou??
Ela gritou o teu nome...!!!"

Por momentos a morte de Clara caiu no esquecimento. Havia neste momento algo a passar-se de muito estranho e que César não compreendia. "Será que foi engano?", pensava ele em voz alta.
Voltou a ler, mas nada fazia sentido. Não havia qualquer indicio de que mensagem tenha sido enviada propositadamente para ele.
O telemóvel vibra outra vez. Nova sms... Novamente anônima.

"... César. César."

O telemóvel cai. Estava assustado!!! Se tudo até agora lhe parecia o fim do mundo, agora estava em plenas trevas. Era tudo demasiado irreal para estar a acontecer no mesmo dia.
César fica sem saber o que fazer. Não se conseguia concentrar. O suor imanava por todo o seu corpo.

Do chão o telemóvel volta a vibrar. Desta vez era uma chamada da recepção da rádio. César atende.
"César?", pergunta a recepcionista.
"Sim é César", responde com um tom agastado e triste.
"Estão aqui em baixo uns senhores da judiciária para falar consigo"...




.....(off topic).....

Como sugestão do Pratas em relação à música para este capítulo, decidi incluir a Fácil de Entender dos The Gift como música alternativa a este capitulo. Sem dúvida que é uma bela sugestão e encaixa perfeitamente neste episódio.

quarta-feira, 9 de maio de 2007

Capítulo XV

O motorista do táxi estava entretido a falar sobre o penalti que tinha sido marcado contra o Benfica na noite anterior, mas Bernardo não gostava de futebol. Nunca tinha gostado. Sua paixão era a pesca desde o dia em que o seu pai o levara pela primeira vez a pescar no Tejo. Tinha apenas 5 anos e mal conseguia segurar na cana para puxar os peixes.
Nasceu em Vila Nova da Barquinha, em 1960. Sua família nunca teve muitas condições. Na maior parte da sua vida só ele e a mãe estavam em casa, pois o pai tinha ido para a guerra em 1970 e nunca mais voltara. Cedo ele teve que se tornar no homem da casa.
Sempre fora muito inteligente. Na escola já pensava que um dia seria alguém importante. Não sabia como chegaria lá, mas a sua ambição e a sua perseverança nunca o abandonariam.
Em 1987 entrou para a universidade em Lisboa. Toda a sua família tinha orgulho dele. Tinha escolhido Direito, pois era aquilo que o seu pai sonhava que ele estudasse, mas sabia que aquele curso não seria o suficiente para o ajudar a conquistar os seus objectivos. Sim, porque nesta altura já sabia o quais eram os seus objectivos de vida.
O curso foi útil, pois conheceu algumas pessoas influentes. Desde que lera “O Príncipe”, de Maquiavel, percebera que nesta vida é preciso usar em nosso benefício o que as pessoas têm de melhor. Acreditava que só os ambiciosos triunfam.
No mesmo ano em que sua mãe morreu e Bernardo acabou o curso de Direito, ingressou no segundo curso. Estava cada vez mais obcecado com o seu plano, e a Economia o ajudaria a perceber melhor o universo financeiro. Seria essencial. Nas suas horas vagas devorava leis que seriam úteis para fundar a sua associação de ajuda principalmente a pessoas desempregadas ou desocupadas. Seria fácil ser visto como uma pessoas que pensa no bem comum.
Mas agora Bernardo estava quieto, absorvido pelos seus pensamentos. Aquele era o último passo antes de chegar onde sempre sonhara estar. Era o começo de uma nova vida.

“Pedro?”
“Bernardo, meu grande amigo. ‘Tás bom?”
“Tudo bem. Hoje é o dia. Podes passar no escritório?”
“Claro! Mas ela vai estar lá?”
“Vou dizer-lhe que vais passar por lá na hora do almoço. Ela fica à tua espera.”
“Ligas-me quando chegares?”
“Ok”
Pedro era seu amigo desde a época em que estudaram Direito juntos. Eram muito diferentes. Pedro tinha pais ricos, e talvez por isso não tivesse grandes ambições para o futuro. Sabia que quando acabasse o curso teria um emprego garantido na firma do pai. Bernardo sabia que um dia ele poderia ser-lhe útil.

Saiu do táxi com a sua mala de mão, a mala do portátil, e o jornal debaixo do braço. Pelo menos por enquanto não precisaria de muito mais do que isso. E quando precisasse, poderia comprar tudo novo.
Parou num daqueles cogumelos que os aeroportos têm agora para os fumadores. Não gostava de se sentir excluído e não gostava de ter que fumar ali, mas hoje não tinha cabeça para pensar sobre a injustiça dos cogumelos.
Acendeu um cigarro e abriu o jornal, mas não conseguia estar com atenção. Folheava as páginas, mas a sua cabeça estava noutro lugar. Entretanto, passou os olhos por uma frase que o fez pensar: “Nesta busca incessante pelo mundo, às vezes deixamos escapar aquilo que se encontra mesmo debaixo dos nossos olhos.” Pensou na Marta, seu braço direito. Ela acreditaria no que Pedro tinha para lhe dizer?
Desde os tempos do curso de Economia, onde se conheceram, Bernardo sabia que Marta tinha uma capacidade fora do normal de “avaliar” as situações e prever alguns acontecimentos. Ela não se apercebia (ou não acreditava), mas já tinha salvo a sua vida pelo menos uma vez.
Marta ajudou-o a fundar a Associação Nacional do Direito ao Crédito e a implementar o microcrédito em Portugal. Ela o respeitava, e nunca soube quais eram os reais objectivos de Bernardo com aquela associação. Mas para isto ele teve que viver como uma pessoa honesta e altruísta. O plano estava todo dentro da sua cabeça. Bastava que ele seguisse, com calma, os passos que tinha friamente calculado.

“Estou?”
“Marta, tem o telemóvel desligado!” Detestava quando ela fazia isso. Nos momentos mais importantes estava incontactável, e ele que ficasse atrás dela.
“Desculpe, Bernardo. O meu telemóvel ficou sem bateria e está a carregar.” Parecia sentir-se culpada, e isso já bastava para que Bernardo ficasse satisfeito. Talvez assim aprendesse.
“Marta, ontem à noite deixei na gaveta da minha secretária um envelope fechado. Vai passar aí no escritório uma pessoa, um homem, antes da hora do almoço, para o ir buscar.” Ouvia-se uma avião a descolar. “Faça-me o favor de lho entregar.” Meses antes tinha lhe confiado as chaves de todas as suas gavetas. Sabia que um dia podia ser necessário.
“Sim, Bernardo”. Ela sentia-se importante, de confiança. Isso era importante para que agisse como ele esperava.
“Só mais uma coisa, Marta.” Este homem que lhe falei chama-se Pedro e para além de ir buscar esse envelope vai entregar-lhe um dossier confidencial.” Esta história do dossier tinha inventado agora. Queria deixá-la curiosa. Não queria que ela se sentisse tentada a ir almoçar sem falar com Pedro. “Percebeu?”
“Certo, Bernardo. Faça uma boa viagem”. Ela pensava que ele ia embarcar para Dhaka, como tinha feito em todos os anos anteriores, mas desta vez ele tinha um destino muito mais atractivo. Não teria mais de aturar os presidentes de associações de microcrédito. Nunca mais!

Agora era só esperar.
Pegou nas suas coisas e foi comprar a passagem. Já só havia lugares na primeira classe, mas naquele momento ele só pensava em embarcar. Tirou algumas notas de 100€ da carteira, pagou e foi fazer o check-in. Estaria no ar em menos de uma hora. Fora de Portugal estaria seguro.

Chegou a Barcelona ainda não eram 15h. Já tinha saudades daquela cidade. Era irreverente, colorida, aconchegante. Gostava de poder morar ali, mas isso era impossível, pois ali poderia facilmente ser encontrado.
Instalou-se num studio que havia arrendado pela Internet. Não era luxuoso, mas a localização era excelente. Ficava no Passeig Gracia, perto da Praça da Catalunha e das Ramblas. Ali tinha tudo o que precisava, e todas as noites poderia ver da sua varanda a Casa Batlló iluminada. A iluminação parecia torná-la ainda mais bela e colorida.
Naquela altura Pedro já tinha conversado com Marta. Já lhe tinha contado toda aquela história sobre ele, Bernardo, ser um viciado em jogo que tinha entrado em negócios ilícitos. Achava até piada. Quando seria ele estúpido o suficiente para se meter com os ciganos? Não. Ele queria mais. E sabia como chegar lá.
A ideia tinha sido de Pedro, é claro. “Até custa a acreditar que a Marta vá demorar mais do que 10 minutos para saber que essa história é falsa.”, pensou alto. Às vezes ele falava sozinho. Se calhar era por ter sido sempre assim. Sozinho.
Ela demorou um dia. Talvez Pedro tivesse sido mesmo convincente, ou talvez ela estivesse tão “ocupada” a olhar para os seus belos olhos verdes que preferiu não ouvir a sua intuição. Mas acabou por chegar lá.
Ainda tinha falado com Pedro algumas vezes por telemóvel na frente de Marta para que a história fosse mais convincente. “Pedro deve estar a adorar isso tudo. É bom, porque assim também ele se distrai.” Tinha-lhe dito que ia estar em Barcelona depois do encontro em Dhaka e que voltaria para Portugal em breve.
Já há alguns meses Bernardo tinha começado a elaborar uma estratégia para distrair Marta. Ela não podia desconfiar. Lembrou-se que o seu amigo Pedro por acaso até conhecia algumas pessoas que trabalhavam na Judite, e perguntou-lhe se não estaria interessado em apresentar uma pessoa com PES aos investigadores. Adorou a ideia. Até já começara a “fazer um filme” sobre como Marta poderia descobrir milhares de criminosos e ficar muito famosa.
Pedro era mesmo assim. Às vezes até parecia viver num outro mundo em que só existiam séries de televisão, livros do Dan Brown e teorias da conspiração. Ficaria tão empolgado com a sua participação naquilo que chamava de “conto policial” que não pararia para pensar nas verdadeiras intenções do amigo.
Bernardo tinha certeza de que Marta adoraria fazer algo mais empolgante do que ficar cinquenta horas por semana trancada naquele escritório. Talvez ela até se sentisse “realizada”.

Adorava ir para o Park Güell no fim da tarde e ver a cidade enquanto tomava um frapuccino de chocolate da Starbucks. Era um dos pequenos prazeres que ia lhe custar deixar para trás.
O telemóvel tocou. Era Diogo Madureira, irmão de Pedro. Tinha telefonado para a dizer que a Clara tinha morrido e que Pedro estava a precisar de algum apoio. Bernardo, como bom amigo, poderia tentar falar com ele e oferecer uma palavra de conforto. Mas ele só conseguia pensar que aquela era uma óptima oportunidade para tirar Pedro de cena. Pedro andava a desconfiar da demora de Bernardo a voltar para Portugal.
“Acho que a melhor coisa é pedir ajuda ao Dan Brown.”, ironizou. Pedro havia lhe oferecido o livro “Código da Vinci” no último Natal, mas Bernardo não era um grande apreciador deste tipo de escrita. Preferia ler filósofos como Hobbes e Maquiavel, que viam a natureza humana como ela realmente é.
Foi à biblioteca pública e pediu para consultar o tal livro. Nem precisou ler muito para que a sua criatividade começasse a trabalhar. Pedro era Robert Langdon, e Marta poderia ajudá-lo e ser uma espécie de Sophie Neveu. “Que grande dupla!”, pensou. Bernardo sentia-se extasiado com as suas ideias.
Precisava de um mapa que ajudasse Pedro “Langdon” Madureira a desvendar o mistério. Já estava mesmo a ver Pedro a percorrer as ruas escuras de uma vila no seu Smart. Mas antes precisava de uma história!
Passou a noite a escrever um enredo no seu portátil. Iria pôr a sua capacidade criativa à prova. Tinha que falar com Pedro logo pela manhã e enviar o “mapa do tesouro”. “Mas qual seria esse tesouro? O assassino da Clara, talvez. Não será muito mórbido? Talvez ela seja a única pessoa na cabeça de Pedro neste momento.”, pensava.
Talvez aquela fosse a única forma de unir Pedro e Marta numa “caçada” e distrair as atenções dos dois. Faria com que aquele mapa desse numa quinta. Ela ficava perto de uma floresta numa zona quase deserta, e o portão tinha flechas de ferro forjado preto, e aquilo poderia despertar a curiosidade de Pedro. Os mochos e a escuridão dariam o toque final naquele cenário misterioso. Seria o local de um dos templos da seita da Grande Lua Ibérica. “Que grande nome! Que grande ideia, Bernardo!”. Sentia-se um génio.
A quinta era de um velho conhecido. Ele tinha apenas a companhia dos cães de guarda. As pessoas das aldeias em volta costumavam até dizer que era uma quinta assombrada! Serviria para perderem ali uma noite e ficarem mais uns dias às voltas desse assunto.
Mas Bernardo só precisava distraí-los por mais dois dias. Passaria na Suíça e depois ele estaria bem longe com todo aquele dinheiro. Tão longe que ninguém o poderia encontrar. E teria tudo aquilo com que sempre sonhou!

domingo, 6 de maio de 2007

Capítulo XIV

Desce pelo elevador do prédio de apartamentos onde habitava a ex-mulher. Os seus olhos estão vermelhos. Quase não consegue evitar as lágrimas.
Apesar de já não existirem praticamente nenhumas ligações sentimentais ou afectivas com Clara, não desejava que aquilo lhe tivesse acontecido. Por momentos pensou na aflição que a ex-mulher certamente teria sentido. Arrepiou-se.
Ao sair para a rua apercebe-se do aparato em redor do prédio: vários carros estacionados e gente de um lado para o outro com aparelhos esquisitos na mão. Afinal aquele apartamento era o local onde tinha ocorrido um crime. Disso já não restavam dúvidas.
Respira fundo e olha para o céu estrelado, sentindo-se, pela primeira vez, realmente assustado com o desenrolar dos acontecimentos.
Mas não podia fraquejar e aquele era o momento de começar a agir. Tinha ainda de passar por casa e mudar de roupa. Iria precisar de vestes mais escuras do que as que trazia consigo.
Ao chegar a sua casa dirige-se imediatamente ao quarto para mudar de roupa. Sabia que não podia demorar muito tempo.
Pega nas chaves do carro, no telemóvel e no casaco de cabedal preto. Sai de casa quase a correr.
O toque do seu telemóvel, auxiliado pelo efeito vibratório, chama a atenção de Pedro. Alguém está a ligar-lhe.
“Sim” atende com uma voz ofegante e decidida, enquanto atravessa o pequeno jardim de sua casa em direcção ao seu carro que estava estacionado na berma da estrada.
“Sou eu” uma voz responde do outro lado. “Estou à tua espera no local combinado”.
“Óptimo. Vou já a caminho.” Pedro estava já dentro do carro com as chaves na ignição. “Aproveita e bebe um café. Vais precisar. A noite vai ser longa”.
Assim que desliga abruptamente o telemóvel, marca outro número, coloca o aparelho colado ao ouvido e arranca com o carro.
Do outro lado, atende um velho conhecido:
“Sim Pedro. Já tens alguma novidade?” A voz de Bernardo parecia ainda mais ansiosa do que da última vez que falaram.
“Não, ainda não. Vou agora para lá.”
“Ok Pedro. Mas tem cuidado” adverte-o “Não sabemos o que vais encontrar lá…”.
“Não te preocupes. Não vou sozinho” responde-lhe com o intuito de o tranquilizar, mas não surte efeito nenhum. Bernardo estava muito nervoso.
“As informações que te dei… já as partilhaste com a Marta?”
“Não Bernardo. Ainda não” Responde. “Não a quero colocar em risco” Faz uma pausa breve para pensar no belo rosto da mulher que prendia todas as suas atenções e pela qual estava a arriscar, quem sabe, a própria vida…”Quando eu sentir que ela está preparada, conto-lhe tudo”.
“Certo. Mais uma vez Pedro… tem cuidado” Disse realmente preocupado com o amigo “Se te acontecer algo nunca me irei perdoar”.
“Não vai acontecer nada. Eu depois ligo-te”. Desliga e olha para o relógio. Já passava da meia-noite. Ainda tinha de fazer cerca de 16 km de estrada até à vila de Mafra.



O Convento de Mafra é o grande símbolo histórico da antiga vila de Mafra. É o mais importante monumento do barroco português. Pedro olha para a sua direita e aprecia a beleza da sua fachada que se estende simetricamente ao longo de cerca de 200 metros, com a Basílica ao meio e o Palácio e o Mosteiro situados lateralmente. A esta hora da noite, a iluminação exterior confere ao monumento uma beleza ímpar. Quase não se vê ninguém nas ruas.
Pedro sorri por momentos, pois lembrava-se das inúmeras lendas que o pai costumava lhe contar quando era menino acerca do convento: “Sabes filho, nos subterrâneos do Palácio existem ratazanas enormes capazes de comer pessoas!”, para logo de seguida acrescentar “Mas há mais Pedro! Existe um túnel secreto que liga o Convento de Mafra à Ericeira. Só o Rei e a Rainha o utilizavam!” Aquelas memórias invadiram a mente de Pedro como um flash.
Pedro esboça um último sorriso e vira à esquerda para a Avenida 25 de Abril. Vai em direcção à Praça do Município.
Estaciona mesmo em frente da Câmara Municipal. No largo já estava alguém à sua espera.
Sai do carro e dirige-se para essa pessoa com um rasgado sorriso, visivelmente satisfeito por a ver.
“Diogo!”
“Mano!” corresponde o irmão ao mesmo tempo que o abraça com força e lhe dá umas valentes palmadas nas costas.
Diogo Madureira era irmão gémeo de Pedro. Solteiro e bom rapaz. Ao contrário do irmão, decidira não fazer a vontade ao pai e foi estudar Psicologia Aplicada para o Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), em Lisboa.
Concluiu o curso em 1994, com a média final de 16 valores. Ao fim e ao cabo, o pai até tinha ficado orgulhoso dele.
“Obrigado por teres vindo” disse Pedro olhando-o nos olhos.
“Como não podia ter vindo, Pedro?” respondeu-lhe entusiasmado “Depois de tudo o que me contaste!”.
“Sim, claro”.
“Pedro… sinto muito pela Clara” disse com num tom sério “Ela era uma boa mulher”.
“Sim… era” Respondeu com uma certa nostalgia “Obrigado”.
“Já sabem quem foi?”
“Não. Ainda não. Estão a iniciar neste momento as investigações. Deixei a Polícia Judiciária no apartamento dela à procura de pistas ou provas. Espero poder ajudar a descobrir alguma coisa ainda hoje.”
“Então vamos”
“Deixa aqui o teu carro. Vamos no meu” disse Pedro e retira um papel amarrotado do bolso e analisa-o com detalhe.
“O que é isso?” pergunta Diogo intrigado.
“Isto mano, é um mapa que o Bernardo me enviou esta manhã por e-mail. Mas vamos, eu no caminho conto-te tudo. Ainda temos de percorrer, segundo a indicação deste mapa, cerca de 11 km.”
Pedro conduzia, ao contrário do que era habitual, a uma velocidade normal, nem depressa nem devagar. Não queria levantar qualquer tipo de suspeita. Sabia o que estava a fazer.
Ao seu lado estava a única pessoa em quem Pedro realmente confiava. Os dois irmãos sempre foram muito ligados. A essa ligação muito próxima não era alheio o facto de serem gémeos.
Abre o porta-luvas, pega numa capa de plástico contendo os documentos anexos ao e-mail que Bernardo lhe enviara e entrega-o a Diogo.
“O que é isto?” pergunta ele.
“Como te contei ao telefone, o Bernardo viajou até Barcelona. O intuito da viagem foi o de estabelecer contacto com Ramon Granés, um empresário da cortiça com ligações familiares e empresariais a Portugal”
“Continua” Respondeu Diogo, sem tirar os olhos dos documentos.
“No século XIX, algumas famílias espanholas, sobretudo catalãs, deslocaram-se para região de Évora e espalharam-se por todo o distrito - Estremoz, Borba, Vila Viçosa, Alandroal, Mourão… - onde se empregaram na indústria corticeira. Alguns dos seus descendentes tornaram-se nos maiores industriais corticeiros do Alentejo”.
Diogo escuta com atenção e apercebe-se que estão inscritos nas folhas do e-mail imprimidas pelo irmão alguns nomes de pessoas. Eram, na sua maioria, homens.
“Esta lista de nomes diz respeito a essas famílias?” pergunta Diogo.
“A lista foi fornecida pelo Sr. Granés ao Bernardo. É um conjunto de registos de trabalhadores empregados em Portugal que a empresa dele fez ao longo do século XX”.
“Mas o que tem ver esta lista de nomes e estas famílias com os crimes que estão a ocorrer? E onde entra a tal Marta no meio desta história toda?”
“O Sr. Granés contou uma história antiga de família ao Bernardo. Parece que houve uma grande desavença entre o avô dele e um irmão, por causa de um segredo importante…”
“Que segredo?”
“Parece que o tal irmão do avô do Sr. Granés pertencia a uma antiga seita ibérica oriunda do século XVII, que se dedicava ao culto de uma suposta Deusa da Lua Ibérica”.
“Mas que raio?! Que Deusa da Lua é essa que eu nunca ouvi falar?!”
“Perguntas bem mano, mas eu não faço a mínima ideia” respondeu Pedro sem tirar os olhos da estrada. “Repara aí num nome que está na terceira página. Joaquim Cristóvão Vieira…”
“Ora Joaquim… Joaquim… Joaquim…” Diogo percorria os nomes na lista com o dedo indicador “Ah! Encontrei!” disse Diogo num tom excitado “Quem é?”
“Era o avô da Marta Vieira”
“A sério?! Ena pá! Mas o que faz ele aqui na lista?”
“Segundo o que o Bernardo apurou, o avô da Marta era um oficial do exército português que antes de entrar para a vida militar trabalhou desde os 9 anos na empresa de exploração de cortiça do avô do Sr. Ramon Granés.”
“Sim, mas e daí?”
“O Major Vieira, deixou o exército em 1946 para ingressar na PIDE - Polícia Internacional e de Defesa do Estado” e prosseguiu “Para além de ser um PIDE, foi o grande impulsionador desta seita em Portugal nos finais dos anos 50, ressuscitando-a e desenvolvendo-a, ao ponto de estabelecer ligações com o Estado Novo e mantendo contactos permanentes e directos com todas as casas da seita espalhadas por toda a Península Ibérica.
“Uau! O tipo era lixado.” Disse Diogo em tom de brincadeira.
“Diogo, o Major ergueu ao todo cinco Templos da seita em Portugal” disse como que a revelar algo de sinistro “Todos camuflados por Quintas, de norte a sul do país. Parece que ainda estão activos e dedicam-se ao ocultismo e ao esoterismo, mas com um marcado sectarismo, intolerante e intransigente” Fez uma pausa e acrescentou “Tudo leva a crer que estão envolvidos nestes crimes…” Outra pausa “Não sei é o motivo.”
“Esta seita chama-se a GRANDE LUA IBÉRICA?” pergunta Diogo ao ler a designação numas das folhas.
“Parece que sim.”
“E que mapa é esse que tens contigo?”
“É o mapa da localização do terceiro templo da Grande Lua Ibérica em Portugal” respondeu Pedro ao mesmo tempo que sai da estrada e mete por um caminho de terra batida. “Estamos quase a chegar”. Desliga as luzes do carro.
Avança cerca de 250 metros e decide parar o veículo.
“Vamos, a Quinta é já ali à frente”
Pedro e Diogo dirigem-se a um grande portão gradeado, cumeado por flechas de ferro forjado preto. Pedro acerca-se do portão e verifica que possui um sistema de abertura digital. Curiosamente e para seu alívio confirma que não existem câmaras de segurança a vigiar os intrusos. Olha em redor a perscrutar atentamente, mas não vê ninguém. A zona é isolada e pouco iluminada. Deserta.
Em volta estende-se um muro de pedra cuidadosamente construído, mas não muito alto. Tem cerca de três metros de altura.
Pedro vai buscar uma velha caixa de madeira que tinha visto no caminho e vira-se para o irmão “Diogo, fica aqui a ver se ouves alguma coisa. Eu volto já”
Regressa dois minutos depois com a caixa na mão e coloca-a junto ao muro. “Diogo, vou entrar. Tu ficas aqui. Se eu não voltar dentro de trinta minutos, ligas para este número” e entrega-lhe o telemóvel “É o inspector Mesquita e é ele quem conduz as investigações”.
“Espera Pedro, eu vou contigo!”
“Não mano. Eu vou sozinho. Não sabemos o que está ali dentro ou quem está a habitar a Quinta”. Coloca a mão no ombro do irmão, gesto típico dele e sorri confiante “Vai correr tudo bem”
“Ok. Toma cuidado”.
Sem perder mais tempo, Pedro sobe para a caixa e pula de uma forma atlética para cima do muro, colocando uma perna de cada lado. Olha atentamente para a luz de uma janela ao fundo, quase encoberta pela imensa escuridão da noite. Ouvia o som de corujas ao longe. Ou seriam mochos? Pedro não sabia bem.
Respira fundo e salta para o desconhecido.

sexta-feira, 4 de maio de 2007

Capítulo XIII

Caminhava lentamente a respirar o ar fresco da noite. O corpo elástico e esguio seguia atento. Apesar dos movimentos aparentemente descontraídos, estava preparado para se defender em caso de ataque. De vez em quando estalava os dedos das mãos.
Levou a mão direita ao bolso e afagou o que se encontrava no interior. Tirou-o e cheirou. O cabelo dela cheirava tão bem. Com a madeixa colada ao nariz, inspirava golfadas de ar como se estivesse prestes a morrer. Aquele cheiro dava-lhe a volta à cabeça.
Abriu a porta do carro e sentou-se ao volante. Pousou a madeixa no outro banco e contemplou-a. Tão bela, tão especial, tão cativante…

Tinha demorado a morrer. Debatera-se bem! Nunca pensou que ela fosse tão viva e tão lutadora. Isto ainda lhe tinha agradado mais. Gostava quando elas davam luta! Ficava em êxtase. Esta tinha sido das melhores.
Tinha sido apanhada desprevenida, mas tinha-se agarrado a ele com quantas forças tinha. Cravara as unhas nas suas mãos. Agarrara-se à vida, como se agarraria a um precipício se estivesse prestes a cair. Não lhe adiantou de muito! Mas tinha contribuído para o prazer da caça.

Arrancou e tomou o caminho até casa. Fazia uma reconstituição da cena na sua cabeça. Conseguia sentir aos mãos a apertar-lhe o pescoço. Aquele pescoço de garça, alto e fino. Lindo. Sentia os cabelos a flutuar junto aos braços quando lhe mergulhou a cabeça na água. As mãos dela cravadas nas suas. O medo, a agitação, o barulho da água a saltar. Estava em êxtase de novo. Lembrava-se do último movimento, do último estertor de morte, e depois do sossego. A paz. O silêncio. Fazia-o sentir-se tão bem!

Estacionou. Correu pelo quintal para entrar pela porta das traseiras. Quando deu por si, ia pelo ar, a uma velocidade estonteante, até cair desamparado no chão. Tinha tropeçado. A mão abriu-se e a madeixa saltou. Bateu com a cabeça no chão. Toda a euforia que sentia foi-lhe sugada do corpo, ao mesmo tempo que o ar lhe saía dos pulmões. Ficou aturdido. Cabeça a latejar. Mãos a tactear à procura da madeixa.
Foi-se arrastando até que finalmente a agarrou. Encontrava-se apenas a alguns centímetros do corpo. Parou. Deixou de lutar. Durante uns segundos prestou atenção aos ruídos. Ouvia o seu coração a bater. A sua respiração agora ofegante devido à queda, estava a começar a estabilizar. Começou a levantar-se, tentando lutar contra as dores de cabeça. Estava tonto. Agarrava ainda com mais força a madeixa na mão direita. Levou-a ao nariz e inspirou o mais profundamente que conseguiu.

Avançou em direcção à porta. Ao longe ouviam-se as corujas a piar freneticamente. Adorava corujas. Também ele era um caçador. Também ele voltava a casa depois de uma noite a caçar. Inspirou o ar da noite e agarrou a madeixa com mais força. Entrou esboçando um sorriso, enquanto as corujas continuavam a piar.

quarta-feira, 2 de maio de 2007

Capítulo XII

Tão depressa a boca se abriu para soltar uma gargalhada como o rosto se fechou ao ver Pedro.
O rosto dele era difícil de perceber. Talvez fosse perplexidade. Talvez fosse incredulidade. Choque.
Marta dirigiu-se a ele. Pedro estendeu a mão. Marta cumprimentou-o.
- Olá Marta. Como estás?
- Pedro… Eu sinto muito…
Pedro cortou-lhe as palavras – Não posso ficar Marta. Venho só dizer olá e adeus. Tenho umas coisas para resolver… - Apontou com os olhos em seu redor como que substituindo as palavras que lhe pareciam evidentes e dolorosas demais para dizer.
- Claro! – disse Marta – Eu compreendo… - A mão esquerda confortou a mão de Pedro que ainda estava colada à sua.
- O inspector Francisco orienta-te por aqui, OK?
- Sim. Sim…
- Bem. Até mais tarde… - A voz sumia-se nele.
- Até… - Marta ficou a ver Pedro sair do apartamento. Dirigiu-se depois para o inspector, ainda com os olhos fixos na porta por onde Pedro acabara de sair. – É comovente como ele consegue manter a postura mesmo quando o mundo acabou de lhe cair em cima!
- É… - disse o inspector com uma voz inesperadamente desligada – Ou isso ou então não lhe caiu o mundo em cima…
- Como?! – interrogou Marta, cuja atenção se deslocou subitamente para Francisco.
- Simples minha cara Marta! O dr. Pedro e a menina Clara estão… estavam… estiveram… whatever… em processo de divórcio. Litigioso.
- Não fazia ideia! – respondeu Marta.
- Aposto que também não fazia ideia que o nosso dr. Don Juan era casado…
Marta sentiu-se corar…
- Bem! Vamos ao que interessa! – Atirou o inspector – Ao que julgo saber a Marta é… Como devo dizer?... “Detentora” de uma característica muito especial… Tipo X-Men. Hehehe!
- Dizem que sim… - Respondeu Marta com um ar nada convencido.
- Peço-lhe que não seja céptica… A Percepção Extra-Sensorial é uma capacidade muito dúbia. Há quem não tenha dúvidas sobre a sua existência, há quem não acredite e deprecie. Pessoalmente, faço parte do primeiro grupo.
- Sim…
- A P.E-S., como deve saber, diz respeito a uma ou mais capacidades que alguns intitulam de paranormais. Clarividência, Premonição, Telepatia, por aí fora… Já alguma vez viu a série Medium?
- Hummm… Acho que não…
- Tente ver um dia. Quem sabe não se identifica…
- Sim – Marta começava a mostrar impaciência.
- Por falar em séries… A Marta, neste momento, faz-me lembrar uma…
- Lost! – exclamou ela.
- Hehehe! Acertou! Será a telepatia?
- Não… – disse Marta sarcasticamente – É lógica!
- Pois… Ora bem, Pelo pouco que me chegou aos ouvidos parece-me que a Marta tem desenvolvidas as capacidades da premonição e da pós-cognição…
- Ui! Em português isso é?
- Basicamente a premonição é ver o que está para acontecer e pós-cognição é ver o que já aconteceu… Ora… É aqui que a Marta entra!
- Como p-pós-cognitória?
- Isso mesmo! O que lhe quero pedir é que faça, com todo o tempo do mundo, esta experiência: Eu vou pedir à equipa de técnicos que pare de trabalhar por uns momentos. A Marta vai tentar concentrar-se e “ver” o que aqui se passou… Não lhe vou dar qualquer informação para não a influenciar…
Marta pareceu pouco convencida mas, ao sinal do inspector, deslocou-se para o sofá e sentou-se.
Que vou fazer? – pensou Marta enquanto olhava em redor. Sentia-se ligeiramente zonza, como quando se levanta de repente depois de ter estado agachada.
Fixou o olhar na porta e levantou-se, dirigindo-se até lá. – Quem sabe se tentar pôr-me no lugar da vítima…
Achou-se a chegar a casa. Cansada. O dia de trabalho acabara. Aproximou os dedos do cabide mas não o tocou. Olhou-o fixamente. Continuou. O inspector seguia-a com o olhar, manifestamente, interessado. Marta seguiu até ao quarto-de-banho. Parou frente à banheira. O seu rosto fechou-se. Triste. De súbito levantou a cabeça. Virou-se e fitou o espelho. Mas não parecia olhar o seu reflexo. A mão esquerda levantou-se e os dedos aproximaram-se do espelho, mais uma vez sem tocar. Os dedos pareciam bailar junto ao vidro como bailarinas numa pista de gelo. Ficou assim alguns segundos e, de repente, apoiou-se no lavatório. Parecia esgotada.
- Tudo bem? – inquiriu o inspector.
- Não sei…
- Diga-me – reagiu ele, sem conter a excitação. – O que “viu”? O que sentiu?
Com a voz nitidamente abalada Marta respondeu – Aqui no quarto-de-banho… Sinto o ar pesado… Como uma presença incómoda… Confesso que me assusta…
- E o espelho…? – atalhou o inspector.
- Não sei… Parece haver ali qualquer coisa… Vi os meus dedos a desenhar… ou escrever…
Francisco ficou pensativo.
- Mais uma coisa…
- Diga… - Respondeu Francisco enquanto dava instruções a um técnico para processar o espelho.
- Quando me dirigi à porta tentei fazer o percurso da tal Clara…
- Sim…
- Ela deixou ali o casaco mas não a bolsa… Quer dizer… Não senti nada de mais mas a lógica…
- Muito bem! Também notámos isso. A verdade é que já ligámos para a Rádio e a bolsa também não ficou lá.
- Rádio? – Perguntou Marta sem perceber.
- Clara Madureira… O nome não lhe diz nada?
Marta afundou-se no sofá, atónita. – Não posso crer…